As transformações no modo de viver e morrer impostas pelo novo
coronavírus podem começar em breve a cobrar um preço alto sobre a saúde
mental das pessoas – se já não o estão fazendo. Segundo a Organização
Mundial da Saúde (OMS), de quando surgiu na China, em dezembro de 2019, a
31 de agosto deste ano, o vírus já infectou mais de 25 milhões de
indivíduos, matou 844.312 e continua se espalhando. Na tentativa de
frear a disseminação do SARS-CoV-2, causador da covid-19, governos e
autoridades de saúde de diversas nações aplicaram regras que alteraram a
forma como as pessoas vivem e se relacionam umas com as outras.
De uma hora para outra, comércio, indústria, escolas e
centros de lazer e atividade física fecharam e a mobilidade das pessoas
ficou restrita. Quem pôde e dispôs dos recursos necessários isolou-se em
casa, adotou o trabalho remoto e passou a ajudar os filhos com as aulas
virtuais. Homens e mulheres começaram a usar máscara em locais públicos
e o contato físico foi desestimulado – desapareceu o beijo no rosto e
até o aperto de mão. Os que precisam ir às ruas convivem com receio de
contrair o vírus e quem se infecta experimenta, além de sintomas
físicos, o medo de desenvolver a forma grave da doença e precisar de
internação. Nos hospitais, os pacientes perdem o contato direto com a
família – em certos casos, conseguem contato remoto – durante um
tratamento prolongado no qual só interagem com a equipe de saúde. Os
médicos e a equipe de enfermagem, por sua vez, vivem rotinas exaustivas
e angustiantes diante do elevado número de mortes e do risco de se
infectar e levar o vírus para casa. O caminho dos que morrem ficou mais solitário, e quem perde alguém para a covid-19 tem de lidar com a despedida incompleta.
Sobrecarga de estresse
Apesar da capacidade humana de se adaptar a transformações, as
mudanças e o surgimento de tantas adversidades em pouco tempo podem
gerar uma sobrecarga de estresse que já preocupa as autoridades
internacionais de saúde e os profissionais de saúde mental. Em 13 de
maio, a Organização das Nações Unidas (ONU) publicou um relatório
chamando a atenção de governos do mundo todo para que adotem medidas
para reduzir o possível impacto da pandemia de covid-19 sobre a saúde
psíquica da população. “A saúde mental e o bem-estar de sociedades
inteiras foram severamente afetados por essa crise e são uma prioridade
que deve ser tratada com urgência”, informa o documento. “É provável que
haja um aumento duradouro no número e na gravidade dos problemas de
saúde mental.”
A OMS considera a saúde mental uma área negligenciada, que recebe dos
países, em média, 2% do orçamento destinado à saúde, embora as doenças
neurológicas e psiquiátricas afetem quase 1 bilhão de pessoas – segundo a
Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), os
transtornos mentais geram custos diretos e indiretos de US$ 2,5 trilhões
(4% do PIB mundial). “Se não agirmos, haverá um grande percentual de
pessoas seriamente afetadas, o que terá um impacto sobre a economia
desses países”, afirmou a psicóloga Dévora Kestel, diretora do
Departamento de Saúde Mental e Abuso de Substâncias da OMS, à tevê alemã
Deutsche Welle no dia seguinte ao lançamento do relatório.
Alguns especialistas sugeriram que os problemas de saúde mental
podem, eles próprios, transformar-se em uma nova pandemia. Por ora, no
entanto, não é possível saber a dimensão que o problema pode assumir.
“Não houve tempo suficiente para coletar dados que permitiriam responder
adequadamente a essa questão”, afirmou a psiquiatra norte-americana
Carol S. North, especialista em traumas e desastres do Centro Médico
Sudoeste da Universidade do Texas, por e-mail a “Pesquisa Fapesp”. Para
North, as pesquisas feitas em pandemias anteriores, como a da Síndrome
Respiratória Aguda Grave (SARS), em 2003, são limitadas. “Precisamos
esperar que bons dados mostrem como a covid-19 está afetando as
pessoas”, propõe.
Sofrimento psicológico
Apesar do pouco tempo desde o começo da pandemia, estudos iniciais
sugerem que as mudanças na rotina e o temor de contrair a infecção e
adoecer começam a elevar o número de casos de sofrimento psicológico – e
possivelmente de problemas psiquiátricos – em alguns países. Realizados
por meio da internet, esses levantamentos consistem na aplicação de
questionários a um número modesto de participantes. Seus resultados,
longe de definitivos, possibilitam ter uma ideia do que pode vir pela
frente. Informações mais precisas só devem ser conhecidas em meses ou
anos, quando os pesquisadores tiverem melhores condições e mais tempo
para aprofundar os estudos sobre esse tema.
Na China, pesquisadores da Universidade Normal do Noroeste enviaram,
por meio de um aplicativo de troca de mensagens, perguntas que permitem
identificar sinais de depressão, ansiedade, consumo excessivo de álcool e
bem-estar psicológico para 1.074 pessoas com idade entre 14 e 68 anos.
Quase dois terços eram moradores da província de Hubei, onde se localiza
a cidade de Wuhan, berço da atual pandemia. Segundo os resultados,
publicados em abril no “Asian Journal of Psychiatry”, a proporção de
indivíduos com sinais de depressão grave era duas vezes mais alta em
Hubei (11,4%) do que nas demais províncias chinesas (5,3%) que haviam
sido menos afetadas pelo novo coronavírus e serviram de parâmetro de
comparação. Algo semelhante foi observado com o consumo abusivo e a
dependência de álcool, respectivamente, de 11% e 6,8% em Hubei e de 1,9%
e 1% no resto da China.
Ainda em abril, um grupo da Universidade de Sichuan, também na China,
reportou na revista “Medical Science – Monitor” os achados de outro
levantamento virtual. Nele, 1.593 adultos de Hubei e de quatro
províncias vizinhas foram entrevistados em fevereiro, no auge do surto,
semanas após a adoção de medidas mais restritivas de isolamento. A
proporção de pessoas com sinais que caracterizam ansiedade e depressão
foi, respectivamente, de 13% e 22% entre aquelas que enfrentaram a
quarentena, índices duas vezes maiores do que os observados entre os
indivíduos que puderam circular e levar uma vida mais próxima à normal
(7% e 12%).
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