domingo, 8 de agosto de 2021

Coronel Feliciano e suas poucas amizades

Típico de uma época de grandes fazendeiros - donos de enormes propriedades rurais -, o coronel Feliciano dedicou-se a ganhar dinheiro e comprar terras, sem jamais pensar em família ou amigos. Era um homem justo, mas duro. A velha Joana e a égua Princesa foram suas verdadeiras amizades.

Duro, insensível, era o mínimo que se podia dizer do “coronel” Feliciano Gutemberg Rodrigues, o “coronel feliz” cujo perfil nada tinha a ver com esse apelido, não se sabe se dado como uma forma diminutiva do seu nome, ou por alguém que, de maneira irônica, quis “premia-lo” diante da sua inflexibilidade que o isolara de familiares, vizinhos e pessoas que poderiam se tornar amigas.  

Dono de vastas terras e, por certo, de uma boa reserva em um banco da capital, ao qual fazia  visitas  periódicas, para novos depósitos e confirmar que  os  reforçados cofres do estabelecimento continuavam mantendo os recheios que ele destinava. Era perito em negociar, jamais fazendo uma transação que não lhe rendesse um bom dinheiro. Além disso, era extremamente sovina, não abrindo a mão para ninguém, a exceção do padre Bulhosa que, depois de uma trezena rezando, conseguia alguns vinténs para a festa anual em louvor a  Santo Antônio e ai residia uma dúvida. Por que um homem tão descrente de tudo, tão indiferente ao social, poderia ter devoção ao santo casamenteiro?

E logo ele que não se casara para não gastar dinheiro com uma mulher, filhos e tudo mais que uma união pode gerar. Quando jovem, e já sovina, andara com duas ou três jovens de boa procedência, mas pelo que se falava, sem um dote compatível com o seu desejo. A última foi Marinete, para alguns Mari, para outros Nete, nunca o nome completo, que era também o mesmo nome de um acanhado ônibus que fazia linha entre as regiões de Monte Verde e Jandaíra.  

Com o tempo o namoro gorou e Feliciano retornou à rotina de levantar muito cedo, “vou acordar o galo”, costumava dizer, e sair para ver cada metro de terra das suas três fazendas, reunidas em centenas de tarefas de terra, com uma boa quantidade de bovinos e equinos, além de animais de pequeno porte. Tinha também vasta área agrícola, em parte mantida com meeiros. Era um homem rico, na verdade, porque jamais perdera dinheiro em jogos, bebidas, passeios e mulheres. Mas era um homem justo, que jamais deixava de honrar um compromisso, ou mesmo atrasar um pagamento e isso o fazia respeitado por todos.

 Os anos foram passando e o coronel engordando a conta bancária e levando cada vez mais longe os limites de suas fazendas. Era só aparecer uma nesga de terra e lá estava o coronel “buzinando” o ouvido do dono.  No lombo de Princesa, uma égua altiva (filha de uma égua mangalarga paulista e um jumento nacional) que se portava com a elegância e resistência, ele cobria toda a região quase que diariamente. A égua era a sua grande amiga ao lado da velha Joana, que cuidava de tudo em  casa. Desde menina trabalhando na casa dos pais do coronel ela permaneceu fiel para tomar conta do fazendeiro que não se casara e de afazeres domésticos não  entendia  nada.

Às vezes saindo do seu mutismo o coronel puxava um dedo de prosa com a velha Joana, mas  logo voltava a sua taciturnidade. Em que ou em quem pensava ninguém sabia dizer, nem mesmo os poucos amigos como Sebastião, Cassiano e Raimundo de Humildes, que eram os que ele aceitava como tal. Na verdade, a égua Princesa era sua maior amiga. Diariamente ela ouvia atentamente as arengas e novidades do coronel. Às vezes balançava as orelhas, esturrava, diminuía ou aumentava a passada, concordando ou não com o que o coronel dizia. E ele também já a entendia De tanta amizade, a égua deixara de dormir no celeiro, onde tinha comida, água e sossego, para dormir próximo à casa grande, bem em frente ao quarto do coronel.

E foi assim que, naquela manhã fria de outono, estranhando o silêncio dentro de casa, em contraste com o ruído que fazia a égua no lado de fora, e a ausência do coronel que, conforme a sua  rotina, já deveria ter tomado café para sair, Joana foi chama-lo e, depois de repetir o ato várias vezes, sem obter resposta, resolveu, com justo temor de uma repreensão, entrar nos aposentos do patrão. Cautelosa empurrou a porta do quarto. Por certo o coronel ainda estava dormindo. Isso nunca havia acontecido, mas pode acontecer com qualquer um, pensou. Deitado, fisionomia serena, parecendo feliz, o coronel estava morto. Lá fora fazendo coro aos gritos da fiel Joana, a égua Princesa batia as patas no chão e zurrava. Afinal, em vida, foram suas verdadeiras amizades!


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