segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Segunda é Dia de Crônica: Rotações

      
Todo abandono descoloniza um universo. É o que eu diria se me ouvissem. Ninguém veio com as ferramentas do esquecimento em modo on, mas quem fica se torna apenas poeira de ossos na memória de quem foi embora. Os relacionamentos, como as versões dos jogos eletrônicos, têm nascimento, desenvolvimento, e versões que podem ser reprogramadas. Deve acontecer com tudo: pessoas, coisas. Coleções de chaveiros, sinos, placas de viagem, bichos. Acho que até com os canivetes, que sabem se defender sozinhos, deve ser assim.
        O difícil é aguentar a ferrugem emocional que nos corroeu. No meio do caminho fica alguma ingratidão. Quem passou por isso sabe onde a banda toca. É o que acho. Gostaria de ter pensamentos mais elevados e menos mesquinhos, mas cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é. Já ouvi dezenas de canções sobre isso. Gosto de canções. Elas tocam em mim. São minha pátria. Gosto da pátria. É assim que me sinto, embora ninguém me ouça. Podemos perdoar, mas perdoar não é esquecer. Fica um risco no disco. Ah! Fica! E não posso guardar o que sinto.              
        Quem guarda em si o que é do outro-amor ou dor-confisca o que não lhe pertence. É como uma ranhura que distorce e faz saltar a música. Eu lembro.
Éramos perfeitos juntos, desde aquela noite em que ela me levou para casa. O cabelo negro tingindo a pele alva e longa, um jeito de rir seiscentista, desses que torna impossível não pensar em garrafas de vinho, noites perdidas e palavras perigosas. A boca cheia de palavras a serem cometidas. A primeira dança. E aquela noite. Se fosse uma relíquia, mil arqueólogos a caçariam por mil anos. O clima de gênese quando ela dançou me acompanhando e o desejo dilacerou seu vestido. Sua nudez, pressentida, fez a terra oscilar de leve sobre o eixo. Sou testemunha. Com direito a voz. Nada maior.
        Nem os anéis de Saturno se girassem na rotação dela. Nem ela, na minha.
Sei que toda casa que uma mulher ocupa se coloniza de seus afetos. Toma sua cor. Até as de cor alva. Ela era o ritmo; eu, o som. O bem-bom. Lembro tudo que fizemos juntos: as sobremesas, a ginástica, as noites que bebeu demais, os dias que chorou horas seguidas sem razão, como choram as mulheres por angústias ancestrais. Eu estava lá, tocando a vida ao seu lado. Feliz pelo bem que lhe causava e as emoções vividas a dois.
        Um dia tudo mudou. Ela disse que precisava se modernizar. E chegou em casa com um CD. O golpe está aí, pensei. Cai quem quer. Ela nunca mais voltou a me ouvir. Depois de tudo. Posso ser apenas um vinil esquecido em algum lugar sem importância, mas ainda vou virar o disco.

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