segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Segunda é dia de crônica : De novo, pai (kairós)

O nascimento de meu filho me pegou no tempo das escalas selvagens de plantão, habitual entre médicos jovens. Mas sempre houve algo mais entre mim e ele. Comia, ia ao banheiro, brincava, dormia, apenas comigo. Sem saber o que dizer me chamava vinte e cinco vezes por minuto. Pai, ô pai. Eu contei. Uma noite acordou para brincar. Tarde. Tão tarde que já nem havia amantes sob a lua. Sentamos ao chão. Ele com a energia típica; eu, com o cansaço de pai se virando nos trinta.
Depois de vários jogos, abri a porta do guarda-roupa ao acaso. Ele fechou.
- De novo, pai. Abri. Ele fechou.
- De novo, pai. Abri. Ele fechou
Inexplicavelmente, a brincadeira o atraiu. E não saciava. Ria. A madrugada corria e o espírito de Herodes começava a me rondar. Cerrei um olho. Resisti. Fechou a porta.
- De novo, pai.
Pai. Lembro que o meu foi o homem mais forte que conheci. Tinha dedicação soberana ao trabalho. Do alvorecer ao crepúsculo. Dos nove anos aos oitenta e sete. Sem férias, sem guardar o sétimo dia. Quando a vida inaugurou suas fragilidades com um black-out no coração, antes de ir ao médico fez meu irmão o levar para ver o gado. Com frequência de trinta batimentos por eternidade. Se a morte dava as caras ele a topava de frente. No hospital, enquanto duas equipes disputavam a implantação do marca-passo, cruzamos a noite com medo, um monitor cardíaco e oxigênio. Que me faltava. Nas coisas da roça chamava meu irmão. Na saúde, a mim.
Anos depois, a de que falam os livros santos, deu outro aviso. Sozinho com ele, na UTI, confiei em sua força, apesar da idade, e autorizei intubação. Dois meses de luta renhida. Erros. Já na semi-intensiva comprou a terra de um vizinho que o visitou. Um clarão. Era ele. Antes da alta, um mês depois, ao ir para o quarto - acossado por ela - estava combalido. Primeira noite apresentou desorientação, agitação, por síndrome do confinamento. Recusei sedação para evitar piora. Ele se arrastava para baixo na cama, irrequieto, puxando fios de soros, fralda. Logo ele, de fralda. Impossível. A debilidade constrange. O pegava nos braços e recolocava no lugar. Era tarde. Tão tarde que já nem havia amantes sob a lua. Ele descia, eu o ajeitava. Descia, eu carregava, já não sem alguma irritação, corpo cansado do dia e da repetição.
-Me deixa descer. Quer me matar, me mata logo.
Era ela, provocando, inconformada de ser vencida. Ele, em cavalos imaginários golpeando indócil seus moinhos. E o tempo fechando a gaveta devagar para que nós pudéssemos, enfim, brincar uma brincadeira, como nunca fizemos.
-Pode vir, disse!
Ele desceu. O levei de volta.
-De novo, pai!

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