A matemática das UTIs: 3 desafios para evitar que falte cuidado intensivo durante a pandemia no Brasil
Na região italiana da Lombardia,
onde o novo coronavírus colocou o sistema de saúde em situação de
colapso, o número de pacientes com covid-19 que precisaram de cuidado
intensivo chegou a dobrar em intervalos de dois a quatro dias. Esses
pacientes passaram, em média, 15 dias em um leito de UTI, a unidade de
terapia intensiva.
Em pouco tempo, a região precisou criar uma
grande quantidade de novos leitos para pacientes críticos: dos menos de
650 que havia no início da crise (fevereiro) para mais de 900 até 20 de
março. Esses dados, que constam de um relatório feito pela Sociedade
Europeia de Anestesiologia, ajudam a evidenciar a alta da demanda por
vagas de UTI em meio ao pico da pandemia e a importância delas para os
pacientes mais vulneráveis à covid-19.
É na UTI que são atendidos
os pacientes em situação mais grave, que precisam de monitoramento 24
horas por dia e uso de respiradores e monitores cardíacos.
"É
uma assistência complexa, que exige uma equipe altamente especializada e
múltiplas especialidades atuando em conjunto - por exemplo,
pneumologista e infectologista", explica à BBC News Brasil Jamal
Suleiman, infectologista do Hospital Emilio Ribas, em São Paulo.
A
complexidade aumenta, diz ele, pelo fato de que grande parte dos
pacientes mais críticos são idosos com doenças pré-existentes.
Estima-se
que entre 5% e 15% do total de infectados pelo novo coronavírus estejam
entre esses casos mais graves. Embora a porcentagem seja pequena, a
dimensão da crise faz com que os números absolutos sejam muito grandes:
já são mais de 1 milhão de casos confirmados no mundo.
Além disso,
embora proporcionalmente poucos pacientes fiquem em estado crítico,
"para eles é muito importante (ter cuidado especializado), porque a fase
aguda da doença é muito grave", explica o médico Hugo Urbano, diretor
científico da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB).
Esses pacientes vão para a UTI quando seu quadro
respiratório se agrava - na prática, quando a frequência respiratória
fica muito alta e a saturação de oxigênio, muito baixa - ou quando a
infecção do pulmão causada pelo coronavírus desencadeia problemas
cardiovasculares, por exemplo.
Os dados disponíveis indicam que a
Itália não tinha inicialmente uma média alta de leitos de UTI se
comparada, por exemplo, à Alemanha, aos EUA ou mesmo ao Brasil.
Aqui, aliás, nosso estoque relativamente alto de UTIs se deve às altas taxas de violência urbana e letalidade no trânsito.
A
BBC News Brasil conversou com especialistas e coletou dados para
entender quais são os pontos fortes e os gargalos dos centros de terapia
intensiva brasileiros no enfrentamento à covid-19 - e o papel da
sociedade inteira para ajudar a mantê-los disponíveis.
Dados do Brasil
Um
levantamento recém-publicado pela Associação de Medicina Intensiva
Brasileira (Amib) calcula que o Brasil tem 48.848 leitos de UTI, sendo
22,8 mil no SUS (Sistema Único de Saúde) e 23 mil na rede privada.
São
cerca de 20 leitos por 100 mil habitantes, índice pouco inferior ao da
Alemanha, um dos mais altos da Europa, e considerado satisfatório e
dentro dos padrões da Organização Mundial da Saúde, que recomenda de 10 a
30 camas de terapia intensiva para cada 100 mil habitantes, diz a Amib.
"Por
que o Brasil, um país mais pobre, tem tantos leitos? O motivo é a nossa
epidemia de violência e a endemia de acidentes de trânsito, que
exigiram muitos leitos de UTI", explica Urbano, da AMIB.
Em
entrevista coletiva em 28 de março, o ministro da Saúde, Luiz Henrique
Mandetta, e seu secretário-executivo, João Gabbardo, elogiaram a
estrutura de UTI do país e disseram que 15 mil leitos adicionais estão
sendo estruturados, junto à compra de mais 17 mil respiradores. Também
afirmaram que, se necessário, a rede pública recorrerá a eventuais
leitos vagos na rede privada.
Mas será que esse total de leitos será suficiente
para atender à demanda crescente da atual pandemia? Isso dependerá de
alguns fatores.
Vejamos, a seguir, os possíveis gargalos brasileiros:
1 - Disparidades regionais
Segundo
o relatório da Amib, há diferenças regionais e entre o sistema público
e privado: enquanto hospitais particulares têm média de 49 leitos por
100 mil habitantes, o SUS tem 1,4 leitos.
E Sudeste concentra 24
mil leitos, ou 60% do total (incluindo tanto público quanto privado).
Embora seja também a mais populosa do país, a região tem proporção maior
de leitos (27 por 100 mil habitantes) em relação à região Norte (9 por
100 mil habitantes, um pouco abaixo do índice recomendado pela
Organização Mundial da Saúde).
Essa escassez da região Norte já
foi maior, explica Hugo Urbano, mas reduziu-se nos últimos anos à medida
que cresceu a demanda por atendimento de saúde, ante o aumento do fluxo
populacional provocado por grandes obras de infraestrutura na região
amazônica, como as hidrelétricas.
Por enquanto, a região Sudeste
tem concentrado a maior quantidade de casos de coronavírus, mas, à
medida que ele avance em outras regiões, os sistemas de saúde locais
terão proporcionalmente menos leitos (particularmente Norte e Nordeste)
com os quais contar.
Um manuscrito
recém-publicado por pesquisadores da Escola de Saúde Pública de Harvard
e da UFMG e por membros do próprio Ministério da Saúde alerta que "à
medida que o número de casos crescer no Brasil, há uma preocupação de
que o sistema de saúde possa ficar sobrecarregado, resultando em
escassez de camas de hospital, leitos de UTI e ventiladores mecânicos",
em diferentes graus diante das diferenças regionais.
"O 'timing'
da escassez provavelmente vai variar geograficamente, a depender do
ritmo de transmissão, da disponibilidade de recursos e das ações
tomadas. (...) "Os leitos de UTI são, de longe, a necessidade mais
premente"."
A previsão, porém, não é otimista: o manuscrito aponta
que todas as regiões do país podem enfrentar esgotamento de recursos,
com variações a depender da estrutura de saúde local e do avanço da
epidemia em cada região.
O estudo adverte que essa escassez pode
começar a ser vista ainda no começo de abril e pede que o governo tome
mais medidas para expandir a disponibilidade de leitos, com a criação de
hospitais de campanha, intensificar o isolamento social e aumentar a
testagem da população.
A presidente da Amib, Suzana Lobo, afirma
que vai ser preciso gerir de modo eficiente os leitos, de modo a tirar o
máximo proveito deles. "Em média, o tempo de permanência de um paciente
comum em uma UTI no hospital público é em torno de 6,5 dias. No caso de
um paciente grave com covid-19, ele pode permanecer de 14 a 21 dias.
Para que não haja colapso no sistema de saúde, é necessário que
instituições, profissionais e infraestrutura trabalhem com a maior
eficiência possível, para poder absorver o aumento da demanda", diz em
comunicado.
2. O número limitado de profissionais
O
médico Hugo Urbano lembra, porém, que o principal gargalo brasileiro
não é tanto de estrutura física, mas sim de pessoal: a crise deve exigir
um número grande de profissionais de saúde altamente especializados
para gerir essas UTIs.
Suleiman, do Emilio Ribas, tem opinião
semelhante. "(O atendimento de alta complexidade) não é algo que se
treina a fazer em dois minutos, porque são múltiplas especialidades
atuando em conjunto", diz.
Além disso, a facilidade com a qual o
coronavírus se prolifera tem reduzido a disponibilidade de profissionais
de saúde. Até 31 de março, apenas no Estado de São Paulo, mais de 600
desses profissionais tiveram de ser afastados por estarem infectados ou
sob suspeita de infecção. A expectativa é de que esse número aumente.
Urbano
afirma que a Amib tem elaborado planos para lidar com o excesso de
demanda, con treinamentos extras e planos de contingência, por exemplo
colocando profissionais como cirurgiões e anestesistas, menos
experientes em UTIs, sob a supervisão dos mais experientes.
3 - O achatamento da curva de infectados
Mas
tudo isso - gestão de leitos e recrutamento de profissionais - só
adiantará, segundo os médicos consultados pela reportagem, se
conseguirmos achatar a curva de contágio, ou seja, evitar que uma
quantidade enorme de pacientes se infecte ao mesmo tempo e precise de
tratamento médico simultaneamente.
"Não é por outro motivo que
batemos tanto na tecla da quarentena", diz Suleiman. "O isolamento das
pessoas pressupõe (ao prevenir ou reduzir o ritmo das infecções) uma
redução da pressão sobre o sistema de saúde. Paralelamente, reduz também
a demanda, ao prevenir acidentes de carro, por exemplo."
Por
isso, Suleiman pede que as pessoas saiam o mínimo possível de casa, para
evitar o contágio e também para minimizar as chances de se acidentarem.
Uma
nota técnica do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps)
calcula que, em um cenário em que 20% da população brasileira seja
infectada pelo novo coronavírus, e 5% desses infectados necessitem de
atendimento em UTI por cinco dias, grande parte da rede brasileira teria
sua capacidade esgotada.
Mas, segundo o mesmo estudo, essa
situação pode ser amenizada se o ritmo de infecções for mais lento. No
exemplo hipotético, se 20% da população for infectada ao longo de 18
meses, em vez de ao longo de 12 meses, cairia consideravelmente o número
de redes com a capacidade de leitos esgotada.
O contrário, porém,
também é válido: se 20% da população for infectada em apenas seis
meses, praticamente todo o país ficaria em situação de superlotação de
UTIs.
Em um cenário como esse, diz Urbano, os médicos seriam
obrigados a fazer as (difíceis) escolhas de quais pacientes receberão o
atendimento de terapia intensiva, a partir da probabilidade de cura de
cada um deles.
Problemas semelhantes no mundo
Dilemas
como esses foram vividos por médicos italianos, ante a incapacidade de
atender todos os doentes - fazendo com que alguns idosos fossem
encaminhados a cuidados paliativos em vez de para a UTI.
Em
situações-limite, os médicos precisam fazer essas escolhas porque "se
colocamos mais pacientes (do que o sistema comporta), a mortalidade
geral aumenta", argumenta Urbano.
São muitos os países que estão
vendo com preocupação o aumento da pressão sobre o sistema de saúde,
como Estados Unidos e o Reino Unido.
Entre os britânicos, o NHS
(serviço público de saúde), com uma capacidade de 4 mil leitos de UTI no
início de março, precisou aumentar esse número às pressas para receber o
que tem sido chamado de um "tsunami" de pacientes, concentrados
sobretudo em Londres.
Os EUA, por sua vez, já tinham um grande
estoque de leitos de UTI (96,5 mil, ou quase o dobro do Brasil, segundo
dados cedidos pela Sociedade Americana de Cuidados Críticos à BBC News
Brasil), mas, mesmo assim, profissionais de saúde de Nova York, grande
foco atual da pandemia, precisaram correr atrás de mais camas para dar
conta da demanda.
A Alemanha, em contrapartida, é vista como um
exemplo relativamente bem-sucedido até agora: tem conseguido manter seu
número alto de leitos de UTI (cerca de 34 por 100 mil habitantes,
segundo levantamento do site Statista publicado na Forbes) relativamente
vazios graças testes em massa e isolamento rápido de pessoas
infectadas.
"Tudo depende de achatarmos a curva", conclui Hugo
Urbano ao comentar a situação brasileira perante a pandemia. "Se
deixarmos o vírus livre, chegaremos ao colapso e vamos perder vidas que
poderiam ser poupadas e que nos ajudariam a reconstruir o país mais
tarde." (BBC News Brasil)
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