Na corrida por um medicamento contra a
Covid-19, que já infectou 1 milhão de pessoas em todo o mundo, uma nova
estratégia está se mostrando promissora. Pesquisadores da Universidade
de Aarhus, na Dinamarca, anunciaram que vão iniciar testes clínicos (em
humanos) do mesilato de camostato, princípio ativo que obteve bons
resultados em testes iniciais.
Há um mês, um estudo publicado na revista Cell
mostrou que essa substância consegue impedir que o vírus entre em
células pulmonares humanas em experimentos feitos em laboratório.
Além
de ser mais uma aposta para combater a pandemia (existem outros
tratamentos promissores, quatro dos quais estão sendo testados pela
OMS), a droga também aposta em uma nova estratégia: ela age em nossas
células e não no vírus em si, tornando mais difícil que os
microrganismos se espalhem pelo corpo.
Funciona assim: o Sars-CoV-2, causador
da Covid-19, tem uma padrão de infecção já conhecido. O vírus possui
uma “coroa” de estruturas pontiagudas (spikes), que são proteínas cuja
função é se ligar a receptores presentes nas células humanas para
conseguir infectá-las. Nos humanos, essa porta de entrada é a enzima
conversora de angiotensina 2, ou ACE 2, que está presente em vários
tecidos do corpo, incluindo no trato respiratório e nos pulmões.
(Entenda mais sobre o processo de infecção do novo coronavírus na reportagem de capa da SUPER deste mês – ela está aberta para não-assinantes.)
Depois desse contato inicial entre o
vírus e nossas células através da ACE2, outra parte do processo se
inicia. É aí uma outra proteína humana entra na jogada: a TMPRSS2. O
coronavírus usa essa proteína para “clivar” (termo técnico para dividir)
suas proteínas spikes em duas sub-estruturas, chamadas de S1 e a S2 –
são essas estruturas que garantem que o vírus vai entrar mesmo na célula
e começar a se replicar.
O
mesilato de camostato consegue bloquear a atividade da proteína TMPRSS2
no nosso corpo, dificultando que essa segunda parte do processo de
infecção aconteça. E com isso, como mostrou o estudo publicado na
revista Cell, ele impede que o vírus entre nas nossas células – pelo menos em células testadas em laboratório.
Sair
bloqueando a atividade de proteínas no nosso corpo pode não ser uma boa
ideia, é verdade, mas não se sabe ainda exatamente qual a função da
TMPRSS2 em condições normais. Estudos em camundongos mostraram que
substâncias que a eliminem não parecem trazer alteração nenhuma para o
metabolismo dos roedores.
Começar
testes em humanos apenas um mês depois de testes em laboratório também
parece apressado – em geral, há mais tempo para se garantir a segurança
de sair ingerindo remédios novos em pessoas. Acontece que o mesilato de
camostato não é exatamente novo: ele já é licenciado em países como
Japão e Coreia do Sul para tratar pancreatite, uma inflamação no
pâncreas. Por isso, todos os protocolos de segurança sobre seu uso já
estão estabelecidos e sabe-se, por exemplo, qual dose é segura para uso.
No experimento dinamarquês, pacientes
receberão a dose máxima permitida do medicamento por cinco dias, e
haverá um grupo de controle que receberá apenas placebo. O principal
objetivo do teste será saber se a dose máxima permitida é suficiente
para bloquear a ação da proteína TMPRSS2 em nossos pulmões, o bastante
para impedir a ação do coronavírus. Os resultados deverão sair em três
meses, segundo informou Mads Kjølby, um dos cientistas envolvidos na
pesquisa, à revista Science.
O medicamento é também um dos mais
promissores na lista de remédios que agem diretamente em nosso corpo
para combater a doença, e não no vírus em si. Essa estratégia pode ser
efetiva também com outra substâncias: um estudo preliminar
mostrou que o Sars-CoV-2 pode interagir com até 332 proteínas
existentes em nosso o corpo. Na grande maioria delas, não sabemos para
que o vírus usa as proteínas – sequer sabemos se ele realmente tem algum
tipo de relação com elas ou se somente consegue estabelecer conexões,
sem maiores consequências. Mas, assim como acontece com a TMPRSS2,
bloquear alguma dessas proteínas em nosso corpo pode possivelmente
dificultar que o vírus entre em nossas células. E o mesmo estudo
encontrou 69 remédios já existentes que agem sobre alguma dessas
proteínas, e por isso são considerados bons candidatos.
Equipes de todo o mundo estão
começando testes com essas substâncias para saber se alguma outra também
se mostra eficaz. Mas há um perigo nessa abordagem: como já dissemos
aqui, nem toda proteína pode ser simplesmente bloqueada em nosso corpo
sem que haja consequências negativas. Por isso, novos remédios que sigam
essa lógica tem que passar por muitos testes de segurança antes de
virarem tratamento.
Mas também há uma vantagem: como esses
remédios se voltam para nosso próprio corpo e não para o vírus, eles
evitam a resistência a medicamentos – um problema crescente em terapias
baseadas em antivirais.
Um outro medicamento que age em nosso corpo para evitar o vírus é bem
conhecido dos brasileiros: a cloroquina (ou a hidroxicloroquina). O
medicamento altera o pH dos endossomos – compartimentos na membrana da
célula usados para colocar coisas de fora delas para dentro. Vale
lembrar que, apesar de ter recebido bastante atenção, inclusive do
presidente Jair Bolsonaro, o remédio ainda está em fase de testes – e
pode ser tóxico se usado incorretamente, principalmente para pessoas com
histórico de doenças cardíacas. (Super Interessante)
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