quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Os mitos sobre diferenças entre homens e mulheres que não desaparecem

Quando conheci a neurocientista cognitiva Gina Rippon, ela me contou um caso que ajuda a ilustrar como as crianças podem ser expostas desde cedo aos estereótipos de gênero.
Em 11 de junho de 1986, quando ela deu à luz sua segunda filha, o jogador inglês Gary Lineker marcou uma série de gols contra a Polônia na Copa do Mundo de futebol masculino. Naquele dia, nasceram nove bebês na maternidade. Oito deles receberam o nome de Gary.
Rippon se lembra de estar conversando com uma das mães quando ouviu o choro dos bebês se aproximando.
Com olhar de aprovação, a enfermeira entregou um "Gary enrolado em uma manta azul" a sua vizinha – ele tinha "um par de pulmões e tanto", nas palavras delas.
Já a filha de Rippon (que estava fazendo exatamente o mesmo som) foi preterida com um ar de desprezo.

"Ela é a mais barulhenta do grupo, não parece uma mocinha", afirmou a enfermeira.
"E assim, aos 10 minutos de vida, minha filha recém-nascida sentiu pela primeira vez como nosso mundo é sexista", relembra Rippon.
Rippon passou décadas questionando a ideia de que os cérebros de homens e mulheres são fundamentalmente diferentes – as conclusões ela apresenta de maneira convincente em seu novo livro, The Gendered Brain (“O Cérebro Sexista”, em tradução livre).
O título pode gerar uma certa confusão, já que o argumento da autora se baseia no fato de que não é o cérebro humano que é inerentemente "sexista", mas o mundo em que somos criados.
Sugestões sutis de como um "homem" e uma "mocinha" devem se comportar, desde o momento do nascimento, moldam nossas atitudes e habilidades, o que outros cientistas interpretam como diferenças intrínsecas e inatas.
No livro, Rippon revela a frustração de que este argumento ainda precise ser defendido em pleno ano 2020. E classifica grande parte das teorias sobre diferença de gênero como mitos do tipo "bate-martelo" (jogo infantil) – eles continuam vindo à tona, sob outras formas, não importa com que frequência sejam desmentidos.
"Estamos analisando essa questão, se os cérebros masculinos são diferentes dos cérebros femininos, há cerca de 200 anos", diz ela.
“E, de vez em quando, há um novo avanço na ciência ou na tecnologia, que nos permite revisitar essa questão e nos faz perceber que algumas das certezas do passado estão claramente equivocadas.”
“Como cientista, você pensa que após ter revisado e corrigido essas questões, as pessoas vão evoluir e deixar de usar determinados termos ou conclusões.”
“Mas, de repente, você verá que os velhos mitos estão de volta”, desabafa.
Um dos argumentos mais antigos se baseia no fato de as mulheres terem cérebros menores, o que seria considerado evidência de inferioridade intelectual. Embora seja verdade que o cérebro feminino seja, em média, cerca de 10% menor, há vários problemas com essa suposição.
"Primeiro de tudo, se você acha que é uma questão de “tamanho", as baleias e os elefantes têm cérebros maiores que os homens, e não são conhecidos por serem mais inteligentes", diz Rippon.
Além disso, há o fato de que, apesar da diferença média de tamanho, há uma enorme sobreposição na distribuição dos cérebros de homens e mulheres.
"Ou seja, você tem mulheres com cérebros grandes, e homens com cérebros pequenos."
Vale destacar que o cérebro do cientista Albert Einstein era menor do que a média masculina. E, em geral, vários estudos mostram que, na média, praticamente não há diferença entre a inteligência ou traços comportamentais de homens e mulheres.
No entanto, as velhas teorias continuam ecoando na sociedade.
Rippon acrescenta que as aparentes diferenças estruturais dentro do cérebro em si também são exageradas.
O corpo caloso, por exemplo, é uma estrutura de fibras nervosas que conecta os hemisférios esquerdo e direito do cérebro – e alguns estudos preliminares mostraram que essa via de informações é maior no cérebro das mulheres do que no cérebro dos homens.
Isso foi usado para justificar todos os tipos de estereótipos – como a ideia de que as mulheres são menos lógicas por natureza, uma vez que os sentimentos do hemisfério "emocional" (direito) estavam interferindo no processamento das informações no hemisfério “racional” (esquerdo).
O tamanho do cérebro pode variar bastante entre os indivíduos, mas não é um medidor de inteligência
"O mecanismo de filtragem mais eficiente do corpo caloso dos homens explica os gênios matemáticos e científicos... o direito deles de serem os líderes da indústria, [sua capacidade de] ganhar prêmios Nobel e assim por diante", ironiza Rippon no livro.
Mas, segundo ela, esses argumentos costumam ser baseados em pesquisas feitas com apenas um pequeno número de participantes. E as técnicas para medir o "tamanho" de qualquer região do cérebro ainda são bastante rudimentares e abertas à interpretação, o que significa que até mesmo a existência de tais diferenças cerebrais não tem uma base sólida. (E, claro, a ideia de um cérebro "esquerdo" e "direito" por si só é um mito.)
Apesar de décadas de pesquisa, tem sido muito difícil identificar de maneira confiável diferenças significativas na estrutura do cérebro masculino e feminino.

Hormônios em fúria
E os hormônios sexuais? Será que eles não têm um impacto em nossas mentes e comportamentos? De acordo com Rippon, neste caso, as evidências foram mal interpretadas para depreciar as habilidades das mulheres.
O conceito de tensão pré-menstrual (TPM), por exemplo, surgiu pela primeira vez na década de 1930.
"E se tornou uma razão para as mulheres não receberem posições de poder".
Segundo ela, as mulheres foram inicialmente impedidas de participar do programa espacial dos EUA devido ao receio de ter esses "seres humanos psicofisiologicamente temperamentais" a bordo das espaçonaves.
Embora pouca gente hoje tenha essa visão, ainda consideramos que a TPM produz uma série de mudanças cognitivas e emocionais que não são nada desejáveis.
No entanto, alguns sintomas observados neste período podem ser uma resposta psicossomática (resultado de uma expectativa), em vez de alterações biológicas inevitáveis no cérebro.
Em um estudo conduzido pela pesquisadora Diane Ruble, da Universidade de Princeton, nos EUA, várias mulheres foram informadas que estavam em um período do ciclo menstrual diferente do que acreditavam. E foram solicitadas a preencher um questionário sobre vários elementos da TPM.
A pesquisa revelou que as mulheres que foram avisadas que estavam na fase pré-menstrual se mostraram muito mais propensas a relatar sintomas de TPM – mesmo sem estar de fato nessa fase do ciclo, o que reforça a ideia de que alguns sintomas surgiram de suas expectativas.
"Eu não gostaria de subestimar a realidade das alterações hormonais associadas ao ciclo menstrual, ou negar que as pessoas tenham alterações associadas a flutuações hormonais – já que a palavra hormônio significa agitação para ação", diz Rippon.
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