Quando conheci a neurocientista
cognitiva Gina Rippon, ela me contou um caso que ajuda a ilustrar como
as crianças podem ser expostas desde cedo aos estereótipos de gênero.
Em
11 de junho de 1986, quando ela deu à luz sua segunda filha, o jogador
inglês Gary Lineker marcou uma série de gols contra a Polônia na Copa do
Mundo de futebol masculino. Naquele dia, nasceram nove bebês na
maternidade. Oito deles receberam o nome de Gary.
Rippon se lembra de estar conversando com uma das mães quando ouviu o choro dos bebês se aproximando.
Com
olhar de aprovação, a enfermeira entregou um "Gary enrolado em uma
manta azul" a sua vizinha – ele tinha "um par de pulmões e tanto", nas
palavras delas.
Já a filha de Rippon (que estava fazendo exatamente o mesmo som) foi preterida com um ar de desprezo.
"Ela é a mais barulhenta do grupo, não parece uma mocinha", afirmou a enfermeira.
"E
assim, aos 10 minutos de vida, minha filha recém-nascida sentiu pela
primeira vez como nosso mundo é sexista", relembra Rippon.
Rippon
passou décadas questionando a ideia de que os cérebros de homens e
mulheres são fundamentalmente diferentes – as conclusões ela apresenta
de maneira convincente em seu novo livro, The Gendered Brain (“O Cérebro Sexista”, em tradução livre).
O
título pode gerar uma certa confusão, já que o argumento da autora se
baseia no fato de que não é o cérebro humano que é inerentemente
"sexista", mas o mundo em que somos criados.
Sugestões sutis de
como um "homem" e uma "mocinha" devem se comportar, desde o momento do
nascimento, moldam nossas atitudes e habilidades, o que outros
cientistas interpretam como diferenças intrínsecas e inatas.
No
livro, Rippon revela a frustração de que este argumento ainda precise
ser defendido em pleno ano 2020. E classifica grande parte das teorias
sobre diferença de gênero como mitos do tipo "bate-martelo" (jogo
infantil) – eles continuam vindo à tona, sob outras formas, não importa
com que frequência sejam desmentidos.
"Estamos analisando essa
questão, se os cérebros masculinos são diferentes dos cérebros
femininos, há cerca de 200 anos", diz ela.
“E, de vez em quando,
há um novo avanço na ciência ou na tecnologia, que nos permite revisitar
essa questão e nos faz perceber que algumas das certezas do passado
estão claramente equivocadas.”
“Como cientista, você pensa que após ter revisado e
corrigido essas questões, as pessoas vão evoluir e deixar de usar
determinados termos ou conclusões.”
“Mas, de repente, você verá que os velhos mitos estão de volta”, desabafa.
Um
dos argumentos mais antigos se baseia no fato de as mulheres terem
cérebros menores, o que seria considerado evidência de inferioridade
intelectual. Embora seja verdade que o cérebro feminino seja, em média,
cerca de 10% menor, há vários problemas com essa suposição.
"Primeiro
de tudo, se você acha que é uma questão de “tamanho", as baleias e os
elefantes têm cérebros maiores que os homens, e não são conhecidos por
serem mais inteligentes", diz Rippon.
Além disso, há o fato de
que, apesar da diferença média de tamanho, há uma enorme sobreposição na
distribuição dos cérebros de homens e mulheres.
"Ou seja, você tem mulheres com cérebros grandes, e homens com cérebros pequenos."
Vale
destacar que o cérebro do cientista Albert Einstein era menor do que a
média masculina. E, em geral, vários estudos mostram que, na média,
praticamente não há diferença entre a inteligência ou traços
comportamentais de homens e mulheres.
No entanto, as velhas teorias continuam ecoando na sociedade.
Rippon acrescenta que as aparentes diferenças estruturais dentro do cérebro em si também são exageradas.
O
corpo caloso, por exemplo, é uma estrutura de fibras nervosas que
conecta os hemisférios esquerdo e direito do cérebro – e alguns estudos
preliminares mostraram que essa via de informações é maior no cérebro
das mulheres do que no cérebro dos homens.
Isso foi usado para
justificar todos os tipos de estereótipos – como a ideia de que as
mulheres são menos lógicas por natureza, uma vez que os sentimentos do
hemisfério "emocional" (direito) estavam interferindo no processamento
das informações no hemisfério “racional” (esquerdo).
"O mecanismo de filtragem mais eficiente do corpo
caloso dos homens explica os gênios matemáticos e científicos... o
direito deles de serem os líderes da indústria, [sua capacidade de]
ganhar prêmios Nobel e assim por diante", ironiza Rippon no livro.
Mas,
segundo ela, esses argumentos costumam ser baseados em pesquisas feitas
com apenas um pequeno número de participantes. E as técnicas para medir
o "tamanho" de qualquer região do cérebro ainda são bastante
rudimentares e abertas à interpretação, o que significa que até mesmo a
existência de tais diferenças cerebrais não tem uma base sólida. (E,
claro, a ideia de um cérebro "esquerdo" e "direito" por si só é um
mito.)
Apesar de décadas de pesquisa, tem sido muito difícil
identificar de maneira confiável diferenças significativas na estrutura
do cérebro masculino e feminino.
Hormônios em fúria
E
os hormônios sexuais? Será que eles não têm um impacto em nossas mentes
e comportamentos? De acordo com Rippon, neste caso, as evidências foram
mal interpretadas para depreciar as habilidades das mulheres.
O conceito de tensão pré-menstrual (TPM), por exemplo, surgiu pela primeira vez na década de 1930.
"E se tornou uma razão para as mulheres não receberem posições de poder".
Segundo
ela, as mulheres foram inicialmente impedidas de participar do programa
espacial dos EUA devido ao receio de ter esses "seres humanos
psicofisiologicamente temperamentais" a bordo das espaçonaves.
Embora
pouca gente hoje tenha essa visão, ainda consideramos que a TPM produz
uma série de mudanças cognitivas e emocionais que não são nada
desejáveis.
No entanto, alguns sintomas observados neste período
podem ser uma resposta psicossomática (resultado de uma expectativa), em
vez de alterações biológicas inevitáveis no cérebro.
Em um
estudo conduzido pela pesquisadora Diane Ruble, da Universidade de
Princeton, nos EUA, várias mulheres foram informadas que estavam em um
período do ciclo menstrual diferente do que acreditavam. E foram
solicitadas a preencher um questionário sobre vários elementos da TPM.
A
pesquisa revelou que as mulheres que foram avisadas que estavam na fase
pré-menstrual se mostraram muito mais propensas a relatar sintomas de
TPM – mesmo sem estar de fato nessa fase do ciclo, o que reforça a ideia
de que alguns sintomas surgiram de suas expectativas.
"Eu não
gostaria de subestimar a realidade das alterações hormonais associadas
ao ciclo menstrual, ou negar que as pessoas tenham alterações associadas
a flutuações hormonais – já que a palavra hormônio significa agitação
para ação", diz Rippon.
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