Depois de analisar 65 drogas -
muitas já usadas para tratamentos de diversas doenças - por meio de
testes em culturas de células vivas (in vitro) e simulação
computacional, um grupo de pesquisadores de diferentes instituições
brasileiras descobriu quatro novidades que podem ser promissoras contra a
covid-19.
As duas com melhores resultados são o brequinar, que
está em fase de teste para a leucemia, e o acetato de abiraterona,
utilizada para o câncer de próstata. As outras duas, o extrato de Hedera
Helix, um fitoterápico utilizado para tratar os sintomas de infecções
respiratórias, e a Neomicina, um antibiótico muito conhecido, empregado
em pomadas para infecções na pele, tiveram ação mais moderada contra a
infecção causada pelo Sars-CoV-2.
Antes que surjam
esperanças irreais sobre sua eficiência como tratamento contra a
covid-19 e que as pessoas comecem a se automedicar com essas drogas —
embora algumas exijam receita médica — os pesquisadores alertam que é
prematuro fazer isso. Os medicamentos ainda estão em fase de testagem e,
portanto, seu consumo não é recomendado para tratamento da covid-19.
"Eu
pessoalmente não teria coragem de tomar nenhum deles, sem receita", diz
a pesquisadora Ludmila Ferreira, do Laboratório de Biologia de Sistemas
de RNA, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que participou
da parte computacional da pesquisa. "Ainda é muito cedo para isso."
A
biomédica Carolina Borsoi Moraes, do Instituto de Ciências Ambientais,
Químicas e Farmacêuticas, da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp), que também participou da pesquisa, alerta que os resultados
dos estudos foram publicados para avançar o conhecimento na área e
oferecer novos candidatos à terapia de covid-19 para os cientistas.
"Não
pretendemos de forma alguma incentivar a automedicação e em nenhum
momento estamos dizendo que as drogas que descobrimos são a cura para a
doença", enfatiza. "O que fizemos foi apontar novas opções para
avaliação em novos estudos, tanto in vitro, quanto em modelos animais,
quanto em estudos clínicos (com humanos)."
Feito o alerta, os
pesquisadores explicam como foi realizado o estudo. "Para começar,
pegamos como referência três drogas com relatos de que têm atividade
contra o SarsCov-2, cloroquina, ivermectina e nitazoxanida", explica o
biólogo Lúcio Freitas, do Instituo de Ciências Biomédicas da
Universidade de São Paulo, coordenador da pesquisa. "Testamos elas in
vitro, em células humanas infectadas com o coronavírus, em 10
concentrações diferentes, cada uma o dobro da anterior."
De acordo
com ele, os estudos mostraram que as duas últimas não foram seletivas,
ou seja, mataram o vírus, mas também as células infectadas. "Elas não
passariam para a fase seguinte, que a é a de testes em animais", diz
Freitas. "A cloroquina de fato eliminou o vírus numa concentração que
não prejudica as células. Mas a maioria dos estudos clínicos têm
mostrado, que ainda assim ela não tem eficácia em pacientes humanos,
além de poder ser extremamente tóxica, o que reforça a necessidade de
ter ensaios clínicos que busquem comprovar os resultados obtidos em
estudos in vitro."
O brequinar, o acetato de abiraterona, o extrato
de Hedera Helix, e a Neomicina se mostraram capazes de eliminar o
coronavírus em concentrações que não matam as células, por isso são
consideradas promissoras. Mesmo assim é preciso ter cautela. "Considerar
uma droga como tal é um conceito um tanto quanto subjetivo, pois
depende dos critérios de julgamento de quem analisa", ressalva o biólogo
Jair Siqueira Neto, professor da Escola de Farmácia e Ciências
Farmacêuticas, da Universidade da Califórnia, em San Diego, nos Estados
Unidos. "Eu, na minha posição de pesquisador na área de descoberta e
desenvolvimento de fármacos, considero drogas promissoras aquelas que
demonstraram eficácia terapêutica em um modelo animal."
Ele lembra
que as estudas no trabalho coordenado por Freitas ainda não foram
testadas neste estágio, portanto, ele considera o resultado ainda muito
preliminar. "A triagem de drogas realizada utilizou células Vero de rim
de macaco, que são comumente usadas para estudos virais", explica.
"Essas células são infectadas muito facilmente por inúmeros tipos de
vírus, inclusive pelo Sars-CoV-2, porém apresentam pouca relevância
fisiológica para a doença covid-19 em humanos."
Desse modo, alerta
Siqueira-Neto, corre-se o risco de se identificar drogas que mostraram
atividade nas células de rim de macaco, mas que talvez não sejam ativas
em um modelo fisiológico mais relevante, como o de pessoas. "Ou ainda,
de não identificar drogas que não apresentaram atividade contra o vírus
na célula de macaco, mas que poderiam de fato ser bons antivirais em
células pulmonares humanas, por exemplo", acrescenta.
Apesar das
ressalvas, Siqueira-Neto considera a pesquisa um trabalho importante de
triagem em busca de medicamentos que possam apresentar atividade
antiviral contra o Sars-CoV-2, causador da covid-19. "Existe uma
urgência para descobertas de terapias eficientes contra o vírus e há uma
corrida mundial nesse sentido", explica. "Toda iniciativa é bem-vinda.
Mas penso ser importante ressaltar que o trabalho em questão é ainda
bastante preliminar. Os resultados estão em um repositório online e
ainda não foram revisados por pares."
O que os pesquisadores liderados por Freitas estão
fazendo é o que se chama de reposicionamento de fármacos, que é o
processo em que uma droga já testada e usada contra uma doença passa a
ser empregada no combate a outra. "O processo de desenvolvimento de um
medicamento, entre sua descoberta inicial por triagem em células até
chegar ao paciente, demora em média 10 anos (dados históricos)", diz
Siqueira-Neto. "Boa parte deste tempo inclui testes clínicos em três
fases: 1, verifica a segurança da droga em um pequeno grupo de
voluntários saudáveis; 2, testa de novo a segurança mas também a
eficácia, desta vez em um grupo pequeno de pacientes; 3, realizada em
vários centros com grande quantidade de pessoas para confirmar a
eficácia e, claro, sempre avaliando a segurança."
Segundo ele, uma
forma de "pular" etapas se baseia na tentativa de "reposicionar" uma
droga já aprovada para outra doença ou indicação. "Nesta estratégia,
como já existe resultado clínico de segurança para uma outra indicação,
estes dados podem ser utilizados caso a dose e administração para a nova
doença sejam menores que as já estudadas e sabidamente seguras",
explica. "Isto acelera e reduz os custos do processo de desenvolvimento
de novos medicamentos. Foi o que pesquisadores liderados por Freitas
fizeram."
É preciso agora testar os melhores candidatos em modelos
animais e ao se confirmar a eficácia, estabelecer estudos clínicos em
humanos. "Felizmente, o engajamento de cientistas nesta pandemia tem
sido tão intenso, que os resultados estão saindo muito mais rápido do
que usualmente", diz. "Ainda assim, é impossível prever quando uma
terapia estará disponível. Estamos todos na torcida para que isto
aconteça o quanto antes."
Freitas também é cauteloso. "Toda droga
que tomamos é veneno que ingerimos em doses submortais", diz. "Cada
medicamento necessita de anos de pesquisas, teste de segurança. Não
existe milagre, não há como contornar isso."
Sua colega de
pesquisa, Carolina, acrescenta que "é muito importante" ressaltar que o
objetivo da pesquisa do grupo é oferecer candidatos ao tratamento de
covid-19, que serão avaliados por especialistas (pesquisadores
clínicos), e que os dados por si só não podem ser utilizados para que
pacientes se utilizem de automedicação. "Outro ponto importante é que
nosso trabalho traz candidatos para o desenvolvimento de terapias
novas", diz. "Por exemplo, existem outras moléculas que possuem o mesmo
mecanismo de ação e mesmo alvo molecular que o brequinar ou o acetato de
abiraterona, e elas podem ser também avaliadas in vitro."
(BBC News Brasil)
Nenhum comentário:
Postar um comentário