A controversa ideia de infectar propositalmente pessoas com o coronavírus para acelerar os testes
de uma possível vacina vem ganhando força na comunidade científica
internacional e entre voluntários brasileiros. No mês passado, a
organização americana 1DaySooner, criada em abril para advogar pela realização desse tipo de estudo, recebeu o apoio de mais de 150 cientistas, incluindo 15 ganhadores do Prêmio Nobel.
A entidade já registrou também a inscrição de 32 mil voluntários de 140 países que se dizem dispostos a participar do teste. Ao Estadão, um representante da organização revelou que mais de 9 mil são brasileiros - segundo maior contingente, após americanos, com 15 mil.
No estudo de desafio humano, como esse
tipo de teste é conhecido, voluntários recebem a vacina em teste ou o
placebo para, posteriormente, serem infectados com o vírus, o que
permitiria aos cientistas observar mais rapidamente se o imunizante tem
eficácia.
Nos estudos tradicionais, a prova da eficácia depende do
contato natural dos voluntários com o patógeno. Para isso, é necessário
incluir um grande número de participantes e monitorá-los por meses ou
anos para comparar os índices de infecção entre os que tomaram a vacina e
o grupo controlado.
O apoio de renomados acadêmicos à iniciativa veio por carta aberta endereçada ao diretor dos Institutos Nacionais de Saúde
(NIH, na sigla em inglês) dos Estados Unidos. O documento foi elaborado
pela organização 1DaySooner em conjunto com especialistas como o
pediatra Stanley Plotkin, um dos maiores estudiosos em vacina do mundo. A carta também foi assinada por Adrian Hill, diretor do Instituto Jenner,
divisão da Universidade de Oxford responsável pelo desenvolvimento da
vacina contra a covid-19 que está sendo testada no Brasil.
Em nota ao Estadão, Oxford afirmou "não
estar planejando" realizar estudos de desafio humanos no momento por
ter "extensos ensaios clínicos internacionais para avaliar a vacina em
um cenário do mundo real". Hill, porém, já declarou à imprensa
internacional que considera realizar esse tipo de teste ainda este ano. A
organização 1DaySooner diz estar colaborando com o Instituto Jenner na
elaboração de protocolos.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) também não descarta
a realização de estudos de desafio para a covid-19. Em junho, um grupo
consultor da entidade concluiu relatório preliminar sobre a viabilidade,
importância e limitações desse tipo de pesquisa. No documento, a OMS
define regras que deveriam ser seguidas para minimizar os riscos, como o
recrutamento de voluntários jovens e a administração de quantidade
pequena de vírus.
O comitê de especialistas, porém, ficou dividido sobre
quando tais testes poderiam ser feitos. Metade acha razoável realizá-los
somente quando houver um medicamento eficaz contra a covid. O restante
defende que os testes sejam iniciados imediatamente frente a emergência.
Regras
Os acadêmicos que assinaram a carta aberta defendem que
tais pesquisas podem "acelerar o desenvolvimento de vacinas e salvar
milhões de vidas, bem como ajudar a resgatar economias". Destacam ainda
que os protocolos devem minimizar ao máximo os riscos para os
voluntários.
Nesse caso, dizem, idealmente seriam aceitos participantes na faixa dos 20 aos 29 anos e com boas condições de saúde.
Eles seriam monitorados constantemente, ficariam isolados em
instalações próprias da pesquisa para não espalhar o vírus e receberiam
assistência médica precoce, caso desenvolvessem a doença.
"O risco de morte por covid para uma pessoa na faixa dos
20 anos é de 1 em 4 mil. É semelhante a riscos que a sociedade aceita,
como o de doar um rim", afirmou ao Estadão Abie Rohrig, diretor de comunicações da 1Day Sooner.
Professor e pesquisador de bioética da Universidade Federal de Uberlândia, Alcino Eduardo Bonella
é o único brasileiro que assinou a carta aberta apoiando os estudos de
desafio. "Se a gente aceita o risco de profissionais de saúde e
entregadores trabalharem na pandemia, não tem sentido impedir o
altruísmo de pessoas voluntárias totalmente esclarecidas", defende.
Estudos de desafio já foram realizados para outras
doenças, como cólera e malária, mas, naqueles casos, havia tratamento
para as enfermidades. Para Jorge Venâncio, coordenador da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep),
órgão responsável por autorizar pesquisas com seres humanos no Brasil,
dificilmente um estudo do tipo seria aprovado no País. "Acho fora de
propósito, pois já há estudos de fase 3 sendo realizados, inclusive no
Brasil e nos Estados Unidos, onde a incidência da doença é alta e,
portanto, as pessoas estão expostas ao vírus naturalmente", diz.
Ele destaca ainda que seguir voluntários por mais tempo,
conforme previsto nas pesquisas tradicionais, é importante para
observar se um produto em testes pode causar eventos adversos tardios.
Presidente do Conselho de Ética da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Gabriel Oselka também defende que a contribuição de um estudo como esse não justifica os riscos.
"Se
a vacina não funcionar e a pessoa se infectar, não há como garantir que
ela irá se recuperar, pois ainda não há tratamento. Já temos pesquisas
em andamento que provavelmente nos darão uma resposta sobre a eficácia
ou não dessas vacinas. É mais razoável esperar esses resultados." (Terra.com)
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