domingo, 28 de agosto de 2022

 


* Mulher-Mar*

Vez em quando, a Terra tonta de tanto girar, impacienta-se, desloca-se milímetros e resolve soprar fogo por uma de suas muitas bocas. Assim eu, incertos dias, tonto em ver as malvadas ‘louras’ girarem, intento o equilíbrio, engatilho a pena e atiro ao vento meus (des) enganos. 

É fato, tal vulcânica sensação, vez ou outra, tem efeito repressor, desloca-me de onde estou para a paciente imobilidade de meus livros, porém incentiva-me a dar tinta ao papel. Garatujas, acerca dos primeiros passos na Boa Terra: não sei se “Sociedade Ilimitada”, saga vivida com outros atores, será livro. Caso venha sê-lo, não será biográfico, embora se abasteça de minhas vivências, experiências, impaciências, somadas à imaginação criadora, mescladas pela imantadora energia da Bahia. 

Em suma, evoco o desabrochar, no jardim das amizades, de uma relação com alguém ‘bonita e alta como uma flor de longo caule’. A intensidade do enlace na vida das pessoas atenua-se com o passar do tempo. O alvo da amizade citada, todavia não feneceu e segue a florir dando-me intensas sensações expansivas. 

Sem mais delongas, para retroceder no tempo, tracemos imaginário fio, linha do horizonte cálida e fina a separar terra e céu, presente e passado.

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 Maio, 1965. Recém-chegado à Bahia, instalação fabril da empresa ainda em obras, entre outros misteres, cuido de alugar salas em edifício na Cidade Baixa, centro da pacata vida empresarial soteropolitana de então. Em paralelo, afora primeiros relacionamentos fruto da atividade profissional, por desígnios da sorte, conheci criatura da qual guardo as melhores recordações. 

Sintetizo seu perfil: jovem, sonhadora, baiana de quatro costados, 24 anos, estudante de Belas Artes, extrema sensibilidade voltada às letras, à arte teatral e à música de vanguarda. 

Sem pejo algum, antes emerjam dúvidas, afirmo nunca havermos ultrapassado os umbrais da pura amizade. Inexperiência? Transcorridos tantos anos, diria sim. Ingênuo aprendiz nas artimanhas dos enlevos, deixava-me levar pelos poéticos encantos de sonhos platônicos. Na verdade, a garota ora apresentada foi, apenas, inexcedível amiga de afetos e afagos. 

Qual o nome da figura central dessa HQ descolorida pelo tempo? Se tanto importa, abro a porta. Uma mulher, ‘bonita e alta como uma flor de longo caule’, sempre com o mar consigo: Marlene! 

Marlene adorava Fernando Pessoa. No apartamento onde vivia com sua mãe - endereço bem baiano: Areial de Cima, Largo Dois de Julho, - noites sem fim, curtíamos o vate lusitano e ouvíamos Elis Regina, os Beatles e os emergentes cantantes do conjunto Novos Baianos. 

Revivamos alguns episódios inesquecíveis da caminhada. 

Sol poente pelas bandas da ilha de Itaparica, estávamos no Barravento, point da moda no Farol da Barra quando, finda a hora do Ângelus ecoara a canção de protesto Carcará, “bicho que avoa que nem avião”, na voz altissonante de Maria Betânia.  Uma chuva fina, persistente, induzia-nos ao aconchego de um abraço bem abraçado, abrigados pelo guarda-sol da mesa de nossos drinques. 

Outra feita, na antiga Boate Clock, casa noturna com deslumbrante cenário da Baía de Todos os Santos, assistimos Elis Regina, braços balançando, a interpretar “Upa! Neguinho”. “Vige, que coisa mais linda”! 

No Teatro Vila Velha - centro da contracultura baiana - frequentamos espetáculos de vanguarda e ao final, “caminhando contra o vento sem lenço e sem documento”, - o carro estacionado no Passeio Público, junto ao teatro – íamos festejar no Restaurante Chez Bernard, próximo ao local. Prato das noites? “Coq au vin” em parceria com tinto escolhido a capricho. 

No Tom Bar, em antigo solar no coração de Salvador, aplaudimos Jair Rodrigues em Disparada. “Prepare seu coração prás coisas que eu vou contar”. 

Pois bem, acorro ao verso da inesquecível canção: “prepare seu coração”, leitor amigo. 

Marlene, dando-me as mãos, iria levar-me a conhecer cantos, recantos e encantos baianos. Lugares inacessíveis a turistas apressados, embasbacados e satisfeitos com o ouro das igrejas e a ginga dos capoeiristas. Andamos por pontos onde só entravam filhos da terra, familiarizados com os segredos da noite, afeitos ao toque dos tambores, iniciados no manejo dos búzios, apreciadores das oferendas aos santos, portadores de coloridos colares de seus orixás, gente cabeça-feita, capaz de reconhecer com simples olhar, o santo de cada interlocutor. Foi quando me afirmaram ser Ogum, filho de Iemanjá, o meu orixá e recebi um colar de contas verdes. Usei-o muitos anos: em certos momentos, superava, em significado, o cartão de visitas ou a carteira de identidade. Tempo de aprendizado e expansão de conhecimentos, disto agora me dou conta. 

À época, finais anos sessenta, Marlene desvendou-me as sendas dos terreiros de candomblé, entre eles o da Casa Branca; levou-me a conhecer Mãe Menininha do Gantois; fez-me em preces na Colina Sagrada onde Senhor do Bonfim reina e governa a Bahia; ensinou-me a trilha de acesso à Arembepe, então apenas uma colônia de pescadores, sem energia elétrica. Isso, antes da chegada dos hippies com armas, bagagens e bagulhos.  Acresça-se, certa feita com eles estivemos em dia da Sexta-Feira da Paixão, quando almoçamos feijão com açúcar como impunha a tradição baiana. Naquelas sextas santas os homens do mar não pescavam em devocional respeito à data. Os remos eram içados a bordo, armados em formato de cruz, barcos travados por poitas na pequena enseada frente à singela capelinha. Nós, Marlene e eu, sol e banho salgado, a bordo de uma das barcas, ao embalo dos fluxos e refluxos da maré. A bebida? Aguardente com Cambuí, frutinho silvestre e amargo colhido próximo à linha d´água das desertas praias da Bahia. 

Para prosseguir, o mea-culpa. 

Encantava-me o quanto, a mim ainda jovem, a vida proporcionava, despreocupações financeiras, cartões de crédito empresariais, sonhos de consumo de todo brasileiro. Mordomias - época na qual cheiro de gasolina sabia a perfume francês - abriam portas, reais ou imaginárias.  Na verdade, eu não tinha noção do quanto, precoce, alcançara. O desfrute de tais privilégios entenda-se, facilitou minhas andanças com Marlene, pelos (des) caminhos secos e molhados da Bahia de 57 anos atrás. 

Não exagerávamos - Marlene, minimalista nata, pouco a contentava e muito me encantava. Vez ou outra, amanhecíamos, ora na praia do Chega Nêgo, onde navios clandestinos desembarcavam escravos em tempos da proibição do tráfico; ora em Alto de Ondina, acomodados no gramado, posição ioga, saudando o raiar do dia, ela a recitar Fernando Pessoa. Puro romantismo.

 Marlene ensinou-me o caminho para sua terra, Santo Amaro da Purificação, onde fui apresentado à Maniçoba, uma de minhas paixões gastronômicas. Aquele histórico município do Recôncavo Baiano, vizinho a São Gonçalo dos Campos, cidade aonde vim morar muitíssimos anos mais tarde. Em Santo Amaro, a festa maior acontece dia dois de fevereiro quando em 1966, arregalei os olhos ao ver dois homens barbudos, beijando-se em público. Matuto gaúcho, no terreno do então chamado “amor livre” embasbaquei ao deparar-me com tais precursores. Aquela festa inaugurou minhas andanças, pelas festas populares de Salvador, entre dezembro e o carnaval. 

Ainda na terra de Marlene, fui apresentado a uma figura, Ana Maria, aparentada com Caetano Veloso - a garota veio a ser minha primeira secretária. Dona de letra cursiva magistral, excelente domínio do idioma, rápidos reflexos, organizada, uma profissional a toda prova. Ana Maria converteu-se em minha fiel escudeira. Naqueles anos, não havia telefone na unidade industrial, distante cerca de 20 quilômetros do escritório. Nas idas e vindas à fábrica, valia-me de gravador: cartas e providências a serem atendidas. Passava pelo escritório, assinava cheques, tomava conhecimento de telefonemas recebidos, entregava a fita gravada a Ana Maria. A seguir, tornava a sair para visitar bancos, rotina então consagrada por quantos cuidavam da vida financeira das empresas. Dali partia, para o almoço, ora com um representante comercial, ora com um gerente de banco, ora com um cliente da empresa, ora com...

 Ao retorno, Ana havia atendido as incumbências e aprontado de forma impecável a correspondência. Documentos expedidos diariamente para o Rio Grande do Sul via serviço de malotes. Para datilografar, máquinas elétricas IBM, Ana as dominava com maestria. 

Mas, “não há bem que sempre dure...” Belo dia, minha secretária, resolve juntar-se à turma do Tropicalismo e partir para o Rio de Janeiro. Por certo, dado suas múltiplas qualidades, fora incumbida da logística do grupo. Ficou a saudade. 

Quanto àquele mar de mulher, Marlene, num repente sem rastos e sem estremecimento algum, foi como se um abalo sísmico houvesse rasgado intransponível cânion entre nós. Ao tentar desvendar o véu turvador do passado, concluo haver sido eu, o amigo ingrato. Iniciado nos caminhos e segredos da Bahia, assim como um ‘crooner’ decide partir para voo solo e deixa órfãos os músicos acompanhantes, dei costas à criatura com a qual aprendi a surfar nos mares baianos da música, da poesia, do teatro, das tradições, dos pratos regionais, das artes, da ousadia. 

Agora, resta a doce lembrança da mulher-mar com a qual não tive casa, caso ou casamento e, malgrado o enorme tempo transcorrido - sem saber se viva está – segue vivíssima em minha memória afetiva. 

Recordar é (re) viver!



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