sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Não beberei

Viver é cada vez mais letal. Coexistir, nocivo. Como dizia Sartre, cada vez mais, o inferno são os outros. Tá certo que a coisa já dava sinais que não daria certo, afinal, começou com irmão matando irmão, Caim matando Abel, mesmo sem haver facebook ou zap-zap naquele tempo para exacerbar as emoções.

O cérebro reptiliano, o Tiranossauro rex cerebral primitivo, que achávamos extinto e substituído pelo cérebro racional está em evidência. Aos que duvidam, leiam qualquer área de comentário nas redes virtuais, examinem o comportamento tribal e gutural dos grupos sociais, observem o instinto predador presentes nas relações com uma prática quase extrativista de benefícios e completa degradação do cenário ocupado, em que, sequer, se deixa plantado qualquer semente de esperança que permita o reflorestamento emocional nas separações e a fé na humanidade.
Vejam a deslealdade oportunista com as amizades ou os amores, o desejo da posse temporária, rasa, descartável, uma espécie de UFC sentimental que precisa ser canibal para conseguir produzir alguma emoção e que será finalizada com a mesma velocidade e brutalidade dos combatentes, pois desaprendemos da perenidade.
Hedonistas, individuais, vivemos o aqui e agora, sem renúncias, incapazes da ambição dos horizontes longínquos, de os vermos dilacerados por atos momentâneos, sem noção de perdas e danos de nossas ações. Tornamo-nos mais conectados e as conexões estão nos distanciando exatamente por desnudar as piores edições de cada um de nós, das quais somos todos portadores. Libertamos nossas iras como uma lamina bestial que deseja exterminar todos os divergentes. Tornamo-nos gladiadores on-line a angariar o aplauso das curtidas como quem bebe o cálice da vida eterna.
Estamos nos tornando nômades reacionais incapazes de criar abrigo e moradia na alma, nos braços, na história de nossos amores, de nossas famílias, de nossos amigos. Não cultuamos mais altares sagrados, não devotamos a ninguém a necessidade absoluta de sua existência para nos redimir, e até acusamos de caretice a fronteira das regras e dos valores.
Estamos nos desapegando e o desapego será nossa cicuta existencial.
E, eu, tão feito de temores, tão necessitado da lealdade dos amigos, tão cheio de dúvidas se lutei minhas lutas certas, se sobrevivi ao legado de meus fracassos, se disse a palavra de benção exata aos meus filhos, tão incapaz das reações fratricidas que garantam minha sobrevivência no mundo hostil, termino o dia, por vezes, acuado.
Mas, ainda assim, amanhã, quando as coivaras arderem, eu voltarei a cultivar tudo que me compõe e aqueles que são meus altares referenciais! E não beberei...

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