segunda-feira, 15 de agosto de 2022

SEGUNDA É DIA DE CRÔNICA: O homem com flores

Na esquina de minha rua tem uma floricultura.

Um bar intimista, para as mentiras; uma cuscuzeria, para as urgências da fome; um café, para os frios da alma, tudo agrega valor à moradia. Mas uma floricultura é a vizinhança mais necessária. Aliás, deveria, por decreto, haver tantas delas quanto farmácias: os males do espírito são mais prevalentes do que os do corpo. Eu mesmo, tenho lá certa freguesia.

Da janela da biblioteca vejo a pacata transversal que vai até a loja. Nos fins de semana fica mais deserta. Num desses sábados, manhã de alfazema, vejo um homem de média idade, bermuda, sandália, vindo da loja abraçado a um ramo de rosas. Anda tranquilo como quem sabe estar cumprindo missão superior: presentear flores. Admitamos, com alguma inveja, que alguém é tão importante que aquele homem saiu a pé para comprar-lhe flores. E tudo que cobiçamos na vida é merecer flores em um dia anônimo.

Ele poderia se declarar com palavras, mas optou pelas rosas que o poeta disse que não falam. Caminha lento, debulhando o gesto, soberano, como quem ainda é capaz de delicadezas perecíveis, mas infinitas, em tempos de desvalorização. Talvez, apenas, para dizer que começaria tudo outra vez. Aliás, um conselho às mulheres: nunca amem um homem incapaz de sair a pé para lhes comprar flores.

Fui acompanhando-o a imaginar a quem se destinam as flores: amada, filha, mãe. Mas tinha certeza que era uma mulher, em seu vestidinho de esperas, pronta para um abraço, uma concessão, uma chance de refiar os fios queimados nas coivaras que consomem nossa humanidade. Porque em toda mulher em que há amor, há a vastidão de uma pátria para nos acolher.

De repente, dois rapazes o atacam. Correm, levando seu celular e carteira. Flores não, que flores não têm valor. Ele não larga as rosas, mas já se transformou. Assustado, segue rápido. A mão, crispada, aperta o ramo. Já não é o mesmo homem, já não são as mesmas flores. Quis gritar, mas era tarde. Quis ser solidário, dar-lhe um abraço, me apresentar, pedir desculpas pelo tempo incerto e frágil em que amamos, mas não o alcançaria. Ela, que receberia as flores, talvez, em pranto; eu, que os imaginei recebendo minha benção oculta; ele, que iria encher um olhar de céu- ficamos, todos, sem a poesia desse dia.

No sábado seguinte, fui à floricultura, desconfiado. Uma pessoa fazendo o que aquela fazia deveria ser intocável, mas esse é um mundo em que já roubam até um homem com flores.

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