segunda-feira, 22 de agosto de 2022

O cão que virou santo proibido pela Igreja


Por volta do ano 1200, uma trágica história teria ocorrido em um castelo na região de Lyon, então parte do Sacro Império Romano-Germânico, atual França. O casal de nobres que ali morava precisou sair para resolver problemas no povoado vizinho. Durante a ausência, o filho deles, um bebê, ficou sozinho no quarto.

Quando eles retornaram, encontraram o cômodo todo bagunçado, com marcas de sangue pelo chão. E o cachorro que ali vivia, um galgo chamado Guinefort, veio ao encontro deles. Tinha sangue em sua boca.

Desesperado, o homem não teve dúvidas: aquele cão havia matado seu filho. Em um segundo, com sua espada, ele decepou o animal.

Mas alguns minutos depois, o casal percebeu que havia cometido uma grande injustiça: enquanto o bebê estava dormindo tranquilamente, uma cobra perigosa estava trucidada, morta, ao canto do quarto, com a cabeça arrancada. Sim, o cão havia matado a cobra para proteger o filho. Havia sido um herói.

Profundamente arrependido, o homem mandou providenciar um enterro com honras para Guinefort, com direito a lápide. Aos poucos, a história acabou ganhando contornos de lenda, aumentada e espalhada. E o local se tornou um ponto de devoção popular.

Mais que herói, Guinefort havia se tornado um santo. São Guinefort. Procurado principalmente por mães aflitas em busca de curas milagrosas para seus filhos doentes.

Mas no entendimento da Igreja, havia algo errado. Venerar um animal parecia mais idolatria do que cristianismo.

"A Igreja, de fato, condena a prática da veneração a animais, porque a tradição católica entende que a santidade é uma dádiva concedida por Deus especificamente ao ser humano, que foi criado à sua imagem e semelhança", explica o estudioso de hagiologias Thiago Maerki, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos.

Inquisição

Para o historiador, filósofo e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, o ponto-chave é entender que, para o cristianismo, "o ser humano é a joia da criação de Deus".

"Este é o elemento fundamental da concepção judaico-cristã: Deus cria absolutamente tudo, mas é ao ser humano dotado de razão que ele acaba, de alguma forma, fazendo transparecer sua imagem e semelhança", aponta.

"Nesse sentido, a tradição eclesiástica entende que esse privilégio dos seres humanos nos colocam em um patamar acima dos animais. Os animais também representam a criação de Deus, mas os seres humanos são racionais, carregando a ideia e o conceito de serem imagem e semelhança do próprio Deus", acrescenta ele.

Nesse sentido, o teólogo lembra que "a veneração de animais" acaba sendo vista como "algo que poderia se configurar uma idolatria".

"E a Inquisição acaba agindo de maneira truculenta, violenta até, em defesa dessa concepção teológica, para evitar que um animal fosse adorado", contextualiza Moraes.

Coube ao religioso dominicano Estevão de Bourbon (1180-1261) dar um basta a essa história. Considerado um dos primeiros inquisidores da Igreja, ele dedicou-se a enumerar e escrever sobre o que ele considerava como sendo os bons e os maus exemplos daquele tempo. E condenou veementemente a devoção ao santo canino.

Registrou sua história, é verdade. Mas, segundo consta, mandou exumar os restos mortais do bicho e determinou que tudo fosse queimado, para que o local deixasse de ser ponto de peregrinação.

"Entretanto, a veneração [a Guinefort] continuou. Porque existe o poder da voz popular e o culto ao cão se difundiu", conta Maerki.

"A Inquisição usava a violência, de modo absurdo. Mas nem sempre a Igreja tem o controle sobre o que de fato as pessoas sentem, a fé que as pessoas têm. Isso não se controla. E a história daquele cão acabou desembocando em veneração", afirma Moraes.

Santos e cães

Professor no Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o historiador André Leonardo Chevitarese comenta que a passagem de São Guinefort o faz relembrar sua adolescência em Niterói, no Rio de Janeiro.

São Domingos de Gusmão, representado ao lado de um cachorro carregando uma tocha

Há cerca de 40 anos, quando ele frequentava a igreja dedicada a São Domingos de Gusmão, no bairro da Tijuca, Rio de Janeiro, houve um incidente com a imagem dedicada ao santo da paróquia.

Conta-se que quando estava grávida dele, a mãe de Domingos de Gusmão (1170-1221) sonhou que dava à luz a um cão carregando uma tocha na boca. E interpretou que isso significava que seu filho seria um valente defensor da fé, capaz de iluminar os caminhos.

Por conta disso, o santo é comumente representado ao lado de um cachorro carregando a tocha. Mas o padre dessa paróquia da Tijuca havia notado que muitos estavam rezando mais para o cachorro do que para o santo.

"Uma vez ele deu uma bronca meio geral na comunidade reunida para reclamar que as pessoas faziam promessas e pedidos não a São Domingos, mas ao cachorro de São Domingos", recorda Chevitarese.

"Para evitar esse desvio de conduta do fiel, ele mandou retirar a imagem do cachorro da estátua do santo."

São Domingos não é o único santo cuja hagiografia ou mesmo representação iconográfica costuma ter a companhia de um cão. Isso também ocorre com São Roque (1295-1327), Santa Margarida de Cortona (1247-1297) e São João Bosco (1815-1888).

"É interessante pensar também sobre São Francisco [de Assis (1181-1226)], sempre retratado como o santo da natureza, o protetor dos animais, aquele que conversava com os animais", comenta Maerki.

"Ele via todas as criaturas como irmãs, por terem sido criadas pelo mesmo Deus."

Para os estudiosos, o ponto é que em todos esses casos, os animais não são protagonistas da devoção, mas sim instrumentos da ação divina.

O historiador Chevitarese explica que a Igreja não aceita a veneração de animais "porque o ato de venerar santos apoia-se em dois elementos-chave".

"O primeiro é que o que faz o indivíduo se tornar santo é seu modelo de virtude, algo pautado por uma conduta absolutamente impecável, alguém a ser copiado, um exemplo. Esse é o primeiro aspecto", pontua.

"Em segundo lugar, a veneração também dialoga com uma intrínseca relação de intercessor: o santo ou a santa são intercessores no céu, junto a Deus."

Nesse sentido, conforme ele justifica, tornar um cão como exemplo de veneração seria um problema. Porque, no grego, a palavra cão deu origem a um movimento filosófico, os cínicos.

"Que são aqueles que não se adaptam a um padrão de cultura estabelecido por uma sociedade. O cínico poderia não utilizar o banheiro para defecar, optar por andar nu ou mesmo ter relações sexuais fora de um espaço reservado", exemplifica.

"No campo filosófico, o modelo do cão é o daquele que não está preso a nenhum padrão ético, moral ou de virtude que se enquadre minimamente no campo de veneração dos santos."

São Roque costuma ser representado ao lado de um cão que teria salvado sua vida


Maerki lembra ainda dos escritos do monge beneditino Rábano Mauro (780-856), que utilizava a figura do cão para ilustrar o próprio demônio.

"Para ele, o cão era assimilado ao diabo. E também aos judeus, aos povos gentios, aos padres desonestos e heréticos", cita.

Sem exceções

É impossível que um dia haja uma exceção e a Igreja Católica aceite a canonização de qualquer animal. Ao mesmo segundo o entendimento religioso contemporâneo.

"Enquanto permanecer a lógica de que o ser humano é a joia da criação de Deus, um ser racional criado à imagem e semelhança de Deus, não há possibilidade alguma de exceção", explica o teólogo Moraes.

"A visão [corrente da Igreja] é de que o ser humano é o administrador da casa, do jardim, o mordomo que cuida de tudo… É lógico que, na história da humanidade, o ser humano tem cuidado muito mal dessa casa chamada planeta Terra…", comenta ele.

Para quem quiser arriscar uma prece ao santo canino, o seu dia é 22 de agosto.

Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/geral-62630274




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