segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Crônica de segunda

 João de Doute

 Ainda na adolescência João Doute foi acometido de um mal que o deixou com a fala embolada e puxando de uma perna. Contudo, se a doença atacou o seu físico, parece ter aguçado ainda mais a sua mente, pois o malandro ficou ainda mais espirituoso e inteligente. Alegre, bonachão, era querido por todos.

Carlinhos Ceguinho, que de cego não tem nada era o seu melhor amigo, o seu alter ego. Certo dia os dois estavam conversando sobre futebol, o esporte favorito, e Ceguinho demonstrava vontade de ir até o Rio de Janeiro para ver o time do coração, o Flamengo, disputar a final do campeonato carioca de futebol. João, embora também flamenguista, desaconselhou ao amigo:

- Eu se fosse você não ia. Lá tá dando um vírus que tá matando mais que o Ebola.

- Que diabo de vírus é esse João?

- É bala...

Assim era João de Doute. Certa vez ele estava viajando com um amigo para Salvador, e o sujeito demonstrou ser, além de “barbeiro”, altamente imprudente ao volante, fazendo barbaridades na estrada. Encolhido no banco do carona, João, assustado, se limitava fechar os olhos e dizer “Piu”, cada vez que o amigo cometia uma imprudência. E foi assim o caminho todo. O cara cometia uma barbaridade, João se encolhia no banco e dizia: “Piu”.

Quase chegando ao destino foi que o cara se tocou e perguntou:

- Qual é o caso João?  Por que vez em quando tu se encolhe todo aí e fica dizendo “piu”?

- Ah! E você acha que eu vou morrer sem dar nem um “piu”?

Fazer o que? Ele era assim, gozador por natureza. Brincava até com a morte. Uma prova inequívoca do desprendimento de João de Doute, de como ele enfrentava as adversidades da vida com resignação e bom humor, foi quando esteve internado no hospital, sofrendo do mal que o tornaria deficiente físico.

O médico conversava em voz baixa com a mãe dele, e ele parecia dormir no leito, mas estava escutando tudo.

Dizia o médico:

- Ele está fora de perigo, minha senhora, mas o lado esquerdo do corpo dele vai ficar meio paralisado, como que “esquecido”.

Foi aí que João deu o ar da sua graça:

- Ô minha mãe, bote meu “pingolin” aqui pro lado direito.

NE: Crônica publicada no livro A levada da Égua e outras Estórias (2003)

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