'Cuidamos dos outros, mas ninguém cuida de nós': as enfermeiras expostas ao coronavírus por falta de equipamentos
Alguns dias depois de tratar de um
paciente com sintomas de infecção pelo novo coronavírus, Amanda*,
enfermeira de um hospital privado em São Paulo, teve de ir para casa.
Isolamento. Os sintomas e apareceram e ela passou a ficar longe da
família.
O paciente atendido por ela tinha tosse, desconforto
respiratório e febre. O homem estava sem máscara porque ainda não tinha
sido identificado como um paciente suspeito de estar com covid-19, a
doença causada pelo novo vírus.
Amanda também estava sem máscara
porque, segundo relata, havia sido orientada pela instituição a não usar
o material de proteção "para não assustar os pacientes".
Na hora,
achou que pudesse ter sido contaminada. "Depois disso, pensei: 'Vou
voltar para casa? Tenho uma filhinha pequena'", conta, também
mencionando os outros pacientes do hospital ao redor daquele que
poderiam ter sido infectados. "Mas disseram que eu poderia continuar
trabalhando." Uma semana depois, já com os sintomas, foi afastada.
Proteção escassa
Profissionais
de enfermagem do Brasil inteiro, linha de frente no tratamento a
pacientes com o novo coronavírus, sofrem com a falta de equipamentos de
proteção individual durante a crise, tanto em hospitais públicos quanto
em hospitais privados.
Alguns,
como essa enfermeira entrevistada pela BBC News Brasil, já foram
infectados no trabalho possivelmente pela falta de equipamento de
proteção, tendo de se afastar do trabalho em um momento crítico para
tratar de pacientes vítimas da epidemia.
O Brasil tem cerca de
2,2 milhões de profissionais de enfermagem, entre técnicos, auxiliares,
enfermeiros e obstetrizes, segundo dados do Cofen (Conselho Federal de
Enfermagem). A grande maioria é de mulheres.
A escassez é
generalizada: profissionais da China, da Europa e dos Estados Unidos
também sofreram e sofrem com a falta de material de proteção.
'Sem chance de prevenção'
Amanda
—todos os nomes nessa reportagem são fictícios, para proteger a
identidade dos profissionais— trabalha no hospital Salvalus, que tem
outros profissionais em casa doentes por causa do vírus.
À
reportagem, o hospital diz seguir todas as orientações e protocolos
definidos pela OMS e pelo Grupo NotreDame Intermédica, operadora de
saúde que controla a rede (leia mais abaixo).
Patrícia*,
enfermeira do mesmo hospital, também está em casa. Sem máscara alguma,
trabalhava fazendo as notificações dos casos suspeitos de coronavírus.
Na
quarta passada, diz, 17 pessoas foram atendidas com suspeitas ao lado
dela. "Eles estavam com máscara, mas eu não", relata. Alguns dias
depois, apresentou sintomas e foi afastada para quarentena.
Ela
diz ficar indignada por ter provavelmente contraído o vírus "sem ter
tido a chance de prevenção". Além disso, destaca que um profissional de
saúde que fica afastado atrapalha todo o serviço de saúde, porque deixa
de atender muitas pessoas e porque outros profissionais que estiveram em
contato com ele também têm de se afastar.
Ela trabalha em dois
hospitais, e profissionais que trabalham com ela no outro hospital
também entraram em quarentena por causa de sua infecção.
"Eu não fico indignada por estar doente, fico mais indignada por não poder estar trabalhando e ajudando outras pessoas", afirma.
Os
chamados EPIs — equipamentos de proteção individual — para
profissionais de saúde são compostos por gorro, óculos de proteção ou
protetor facial, máscara, avental impermeável de mangas longas e luvas.
A
Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda o uso de máscaras
cirúrgicas quando o profissional de saúde entrar em uma sala onde houver
pacientes com suspeita ou confirmação de covid-19.
Assim como a
OMS, o Ministério da Saúde recomenda o uso da máscara com filtração de
95% de partículas, caso da N95, quando houver procedimentos geradores de
aerossóis, como intubação, aspiração, entre outros.
"Para
realização de outros procedimentos não geradores de aerossóis, avaliar a
disponibilidade da N95 ou equivalente no serviço", diz um guia da
pasta.
'Ninguém cuida de nós'
Em
um quarto isolada da família — o marido, uma filha pequena e uma mãe
idosa —, Débora*, enfermeira de um hospital referência em São Paulo,
lamenta. "Temos uma vida, uma família, não estamos ali como robôs para
cuidar das pessoas."
Ela trabalha no Hospital São Paulo, hospital
de ensino ligado à Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), e teve
contato com pacientes com suspeita de coronavírus durante o processo de
triagem, quando ela usava máscara cirúrgica.
"Estamos ali para
cuidar dos outros, mas ninguém está cuidando de nós." Para a enfermeira,
a falta de equipamentos de proteção "é triste e revoltante, mas o
sentimento de desvalorização é maior". "É como se você fosse só um
número ali."
Débora e outra enfermeira do hospital reclamam da
falta de máscaras N95, que filtram partículas no ar e garantem mais
proteção contra contaminação que máscaras cirúrgicas.
Dizem que,
em determinado momento, tiveram de usar essas máscaras para além de sua
validade. O período é definido pelo fabricante.
O Hospital São
Paulo informa que possui os equipamentos de proteção, e a indicação
sobre qual tipo de máscara, necessidade de óculos e de aventais se dá de
acordo com o tipo de contato (leia mais abaixo).
'Não é de agora'
Em
pernambuco, a falta de equipamento de proteção para enfermeiras é tão
grave que o sindicato da categoria na região ameaçou paralisar as
atividades.
"Faltam equipamentos de proteção individual,
inclusive sabão para higiene para as mãos em alguns hospitais. Em alguns
hospitais não tem máscara, óculos de proteção, avental ou luva. Outros
têm máscara, mas falta o restante", diz à BBC News Brasil a presidente
do sindicato, Ludmila Outtes.
"Os profissionais estão
desesperados porque estão desprotegidos. É bem assustador. A gente fica
na parede. A gente vê que o paciente precisa da assistência, mas não se
sente seguro para atender sem o equipamento."
No fim de semana, a Justiça de Pernambuco proibiu a greve.
Segundo
Walkirio Almeida, coordenador do Comitê de Gestão da Crise do Conselho
Federal de Enfermagem (Cofen), a falta de EPIs "não é de agora", mas a
percepção da escassez de material de proteção para profissionais de
enfermagem no Brasil vai se intensificar nesse período por causa da
pandemia.
Em todos os Estados do Brasil, o que predomina entre
profissionais de enfermagem, de acordo com Almeida, é não ter EPI
adequada. "Uns não têm nenhum EPI, outros têm, mas não para todos. Esse é
o panorama geral."
Com um número alto de pacientes chegando aos
hospitais com sintomas de coronavírus e profissionais da enfermagem sem
EPI adequada, o atendimento à população pode ser afetado.
"Já
existe de um déficit de profissionais de enfermagem nas instituições de
saúde. Se essas pessoas também forem infectadas, vão ser afastadas, o
que vai agravar ainda mais o atendimento à população", afirma.
No
Facebook e no Instagram, profissionais de enfermagem comparam os EPIs
aos de outros países. Nas imagens compartilhadas, profissionais
brasileiros usam apenas uma touca e a máscara cirúrgica, enquanto
profissionais de outros países cobrem quase todo o rosto com
equipamentos de proteção.
"O covid-19 é transmitido por
gotículas. Temos que usar material que proteja delas", explica a
enfermeira Viviane Camargo Santos, fiscal do Conselho Regional de
Enfermagem de São Paulo e também integrante do Comitê de Gestão da Crise
do conselho federal.
Os diferentes tipos de avental, óculos e
máscaras utilizados no Brasil atendem a esse requisito. "Lá fora, tentam
deixar menos partes do corpo expostas", diz ela. "Quanto mais você
puder cobrir o seu corpo, melhor. Mas o material que existe hoje no
Brasil, quando não está em falta, é suficiente", diz ela.
Hospitais
O
Hospital e Maternidade Salvalus diz seguir todas "as orientações e
protocolos técnicos definidos pela Organização Mundial da Saúde e pelo
Grupo NotreDame Intermédica" e diz desconhecer qualquer denúncia do
Ministério do Trabalho, "mas reforça que trabalha para garantir a
segurança de pacientes, acompanhantes, equipes assistenciais e todos os
demais colaboradores".
Diz também que, "em meio à quantidade de
casos surgindo dia após dia, a orientação é continuar seguindo os
protocolos da OMS de que a utilização do material seja feita de forma
racional para não haver o desperdício em tempos escassos tanto no
mercado nacional quanto no internacional".
"Todos os equipamentos são destinados para áreas e situações adequadas, mantendo o mais alto nível de segurança do hospital."
O
Hospital São Paulo diz que tem protocolos elaborados conforme
orientações do Ministério da Saúde e da Secretaria de Estado de Saúde e
que, de acordo com as mudanças na epidemiologia, "as condutas foram
sendo adequadas à situação de momento".
"É importante ressaltar
que o Hospital São Paulo abrange um Pronto Socorro de porta aberta, com
várias especialidades médicas. Portanto, pacientes podem procurar
atendimento por uma queixa de dor, alteração neurológica ou outro
sintoma e vir a desenvolver sintomas de infecção respiratória já na
assistência à sua patologia, causada pelo coronavírus ou por outro
vírus. Isso já aconteceu e vai provavelmente voltar a acontecer pelo
tempo de incubação do vírus e desenvolvimento de outras patologias ou
ocorrência de acidentes."
O hospital diz ainda que possui os
equipamentos de proteção, e que a indicação sobre qual tipo de máscara,
necessidade de óculos e de aventais se dá de acordo com o tipo de
contato.
"No risco de contágio, as pessoas querem a melhor
proteção possível, mesmo sendo explicada a indicação de cada um dos
equipamentos."
O Ministério da Saúde diz que "tem trabalhado para
garantir insumos com diferentes fornecedores nacionais ou
internacionais, a partir de compra emergencial, para reforçar o apoio
aos estados e municípios no enfrentamento do Covid-19". Afirma que
comprou 60 milhões de unidades de 21 itens, como óculos de proteção,
luvas, álcool em gel, sapatilhas, toucas, máscaras e aventais. "Estados
já começaram a receber os insumos e devem encaminhar aos municípios."
Além
disso, diz que a pasta já começou o processo para a compra de mais
"72,4 milhões de unidades de EPIs para reforçar estoques dos estados e
municípios". "Cabe reforçar que as aquisições do Ministério da Saúde são
complementares aos estoques que as gestões locais realizam para o
abastecimento das unidades de saúde da rede pública."
Um documento
da OMS sobre a disponibilidade de EPIs diz que o número atual no mundo é
insuficiente, especialmente para máscaras e respiradores e futuramente
para aventais e óculos. "A crescente demanda global — causada não só
pelo grande número de casos de Covid-19, mas também por desinformação,
compras motivadas por pânico e armazenamento — resultará em mais
escassez de EPIs pelo mundo. A capacidade de expandir a produção de EPIs
é limitada, e a demanda atual por respiradores e máscaras não pode ser
atendida, especialmente se o uso inapropriado de EPIs continuar", diz o
texto. (BBC News Brasil)
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