O que é o isolamento vertical que Bolsonaro quer e por que especialistas temem que cause mais mortes?
Um grupo de cientistas tem desafiado
a orientação majoritária entre os epidemiologistas e defendido que as
medidas de distanciamento social da população contra o coronavírus sejam
relaxadas e substituídas pelo isolamento de grupos específicos de
pessoas, aqueles com maior risco de morrer ou desenvolver quadros
graves: idosos, diabéticos, cardíacos e pessoas com algum
comprometimento pulmonar.
Para esses epidemiologistas, os
escassos dados disponíveis apontam que a doença não é tão devastadora
para a população em geral e, por isso, seria possível contê-la sem
enfrentar as massivas perdas econômicas que o atual modelo de contenção
pode causar.
As conclusões são vistas com desconfiança e cautela
no mundo médico, já que a falta de dados não permite conclusões tão
generalizantes para a maior parte dos profissionais.
O risco,
dizem os críticos, é que teorias como essa possam estar equivocadas e
levar o mundo todo a um colapso completo de saúde.
A controversa estratégia é chamada de isolamento
vertical e ganhou ao menos dois proeminentes adeptos nas últimas 48
horas: o presidente americano, Donald Trump, e o presidente brasileiro,
Jair Bolsonaro.
Algo
semelhante foi tentando no Reino Unido, que recuou do plano nesta
semana, após indicativos de que seu sistema de saúde podia entrar em
colapso, e determinou que seus cidadãos deveriam manter amplo isolamento
social adotando o fechamento de escolas e comércios como tem sido a
tônica das medidas ao redor do mundo.
Não está claro ainda se EUA
ou Brasil vão adotar o isolamento vertical como arma central no combate
à pandemia, mas os dois mandatários já se posicionaram publicamente a
favor dessa linha de atuação.
Oito dias depois de decretar estado
de emergência e recomendar que todos os americanos ficassem em casa, na
segunda, dia 23, Trump afirmou que "os Estados Unidos estarão novamente
abertos a negócios em breve. Muito em breve. Muito antes de três ou
quatro meses que alguém sugeriu. Muito antes. Não podemos deixar que a
cura seja pior que o próprio problema".
E reconheceu que
contrariava os médicos que o assessoram nessa nova orientação. Segundo
Trump, a sugestão desses profissionais da saúde seria "manter o país
fechado por alguns anos". "Você não pode fazer isso com um país,
especialmente a economia número 1 do mundo", afirmou.
Nesta
terça, 24, em pronunciamento em rede nacional, Bolsonaro seguiu a mesma
linha, criticou o confinamento por seus efeitos econômicos e na manhã da
quarta, 25, disse que "a orientação vai ser o [isolamento] vertical
daqui pra frente".
Nos Estados Unidos, a projeção é de que a
economia encolha em até 24% no segundo trimestre. A taxa de desemprego
voltaria ao patamar de 10%, como durante a crise de 2008.
No
Brasil, a expectativa de crescimento do PIB foi zerada para o ano de
2020. Os cenários para número de desempregados oscilam de 20 milhões a
40 milhões, a depender do órgão responsável pelo cálculo.
Afinal, o que é confinamento vertical?
Um dos médicos a formularem esse método é David Katz, diretor do Centro de Pesquisa em Prevenção Yale-Griffin.
Em
um artigo publicado no jornal The New York Times, Katz explica a
estratégia com uma metáfora bélica. De acordo com o médico, em um
momento de "guerra" contra o coronavírus, os governos podem optar por
confrontos abertos, com seus resultados mortíferos e efeitos colaterais
graves, ou adotar um ataque cirúrgico, com foco específico no ponto de
maior perigo.
Para Katz, ordenar quarentena forçada em um país,
com fechamento de comércios e escolas, e proibição de circulação de
pessoas a menos que por motivos essenciais é o equivalente ao "confronto
aberto bélico".
O ataque cirúrgico seria isolar os grupos de
risco conhecidos - idosos e pessoas com doenças anteriores -
concentrando neles também os recursos de saúde para tratamento e
prevenção e deixando o restante da população a mercê dos efeitos do
vírus que, em geral, provocam infecções leves e autolimitadas.
A
argumentação de Katz se sustenta em números da epidemia obtidos na
Coreia do Sul, onde o coronavírus a se espalhou e foi rapidamente
contido graças a uma estratégia de testagem massiva da população e de
rastreamento de pessoas que estariam potencialmente infectadas.
"Os dados da Coreia do Sul, os melhores a rastrear
os efeitos do coronavírus até agora, indicam que 99% dos casos de
doenças na população em geral são 'leves' e não necessitam de
atendimento médico. A pequena porcentagem que necessita de intervenção
hospitalar se concentra entre aqueles com 60 anos ou mais, e tanto mais
quanto mais velhos forem os pacientes. Aqueles com mais de 70 anos têm 3
vezes mais chances de morte do que os com idades entre 60 e 69 anos,
enquanto aqueles acima de 80 têm o dobro de risco de mortalidade em
relação aos pacientes entre 70 e 79 anos", escreveu ele no Times.
No
raciocínio teórico, ao deixar a maior parte da população fora do risco
exposta ao patógeno, a sociedade desenvolveria a chamada "imunidade de
rebanho" - um contingente populacional cada vez maior teria anticorpos
para derrotar o vírus antes mesmo que ele se instalasse e pudesse se
reproduzir e se espalhar, o que levaria ao fim da pandemia.
"Estou
profundamente preocupado que as consequências sociais, econômicas e de
saúde pública desse colapso quase total da vida normal - escolas e
empresas fechadas, reuniões proibidas - sejam duradouras e calamitosas,
possivelmente mais graves do que o número direto de vítimas do próprio
vírus. O mercado de ações voltará com o tempo, mas muitas empresas nunca
o farão. O desemprego, o empobrecimento e o desespero que provavelmente
resultarão serão flagelos de saúde pública de primeira ordem", escreve
Katz.
Os argumentos de Katz são compartilhados pelo médico
epidemiologista John Ioannidis, codiretor do Centro de Inovação e
Pesquisa da Universidade de Stanford.
Em um artigo para o site
StatNews, ele afirma que as estatísticas até agora indicam uma
mortalidade de 1% dos doentes por coronavírus.
"Se isso for
verdade, confinar o mundo todo com um potencial gigantesco de
consequências sociais e financeiras é irracional. É como um elefante
sendo atacado por um gato doméstico que, para evitar o aborrecimento do
gato, pula de um precipício e morre", escreveu.
Críticas da comunidade científica
A
teoria de Katz e Ioannidis se tornou música para os ouvidos de equipes
econômicas governamentais que tentam fechar as contas públicas em meio à
perspectiva de recessão.
"Nenhuma sociedade pode proteger a
saúde pública por muito tempo, às custas de sua saúde econômica. Mesmo
os recursos dos EUA para combater uma praga viral não são ilimitados. A
América precisa urgentemente de uma estratégia de pandemia mais
econômica e socialmente sustentável que o atual confinamento", resumiu o
editorial do jornal The Wall Street Journal, conhecido por expressar o
pensamento da elite econômica americana, há uma semana.
No Brasil,
as conclusões dos dois epidemiologistas ganharam adeptos na equipe do
ministro da Economia, Paulo Guedes, em busca de uma saída mais suave
para a crise da saúde pública.
O problema é que, por enquanto, o
isolamento vertical é apenas uma hipótese. Katz e Ioannidis têm sido
duramente criticados por, segundo seus pares, extrapolar inferências a
partir de premissas pouco confiáveis.
De acordo com a última
estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS), seria necessário
aumentar em ao menos 80 vezes o número de testes de laboratório para
coronavírus ao redor do mundo para que fosse possível entender com
precisão o alcance da pandemia e seu potencial de letalidade.
De
acordo com Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, há ainda
falta de máquinas para rodar os testes e até de cotonetes para
coletá-los. O problema é generalizado e atinge mesmo países ricos, como
os Estados Unidos.
Isso quer dizer que os dados disponíveis sobre a
pandemia até agora são apenas uma peça do quebra-cabeças, incapaz de
indicar o que seria sua imagem completa.
Ainda assim, o próprio
Ioannidis reconhece que "no pior cenário, se o novo coronavírus infectar
60% da população global e 1% das pessoas infectadas morrerem, isso se
traduzirá em mais de 40 milhões de mortes em todo o mundo,
correspondendo à pandemia de influenza de 1918".
Não está claro ainda se EUA ou Brasil vão adotar o
isolamento vertical como arma central no combate à pandemia
Mais mortes que o estimado
Mas
há ainda controvérsia sobre a taxa de mortalidade da pandemia. Os dados
da China, onde houve o primeiro epicentro da doença, e da Itália, o
segundo foco global, colocam em xeque as conclusões obtidas a partir de
dados da Coreia do Sul, onde a contaminação foi menor, mais controlada e
contou com um sistema hospitalar em plenas condições de responder a
todos os casos.
Na China, a taxa de doentes com covid-19 que
morreram está em 4%. Entre os italianos infectados, o percentual de
mortes ficou em 9,8%. Ambos são muito superiores ao 1% dos coreanos.
Se
essa taxa prevalecer em outros países, as perdas de vidas humanas serão
significativamente maiores do que Katz e Ioannidis estão estimando.
Para
Harry Crane, professor de estatística da Universidade Rutgers, o erro
de Katz e Ioannidis foi se deixar levar pelo desejo de negar uma
situação que pode causar desespero.
"Sob grave incerteza, é
instinto natural e bom senso esperar pelo melhor, mas se preparar para o
pior", escreveu Crane, em resposta ao artigo de Ioannidis.
Isso
porque a taxa de mortalidade não depende apenas dos quadros de saúde que
o próprio vírus pode produzir, mas da capacidade de resposta das
sociedades de tratar esses doentes.
Como isolar grandes grupos de risco?
Para
piorar, a solução que ambos sugerem, confinar grupos de risco, parece
impraticável na maior parte dos países. Primeiro porque os grupos de
risco conhecidos até agora, como idosos, cardíacos e diabéticos são
numerosos.
Nos EUA, os idosos são 15% da população. E 40% dos
americanos com mais de 20 anos são obesos, condição que predispõe a
diabetes e cardiopatias. No Brasil, 13,5% das pessoas têm mais de 60
anos e 20% são obesas.
Na prática, a medida sugerida pelos
pesquisadores representaria isolar algo como 2 em cada 5 americanos ou 1
em cada 5 brasileiros. Para complicar, muitas pessoas nessas condições
não moram sozinhas, o que tornaria ainda mais complexo mantê-las
isoladas do risco de contrair o vírus.
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Quem defende isolamento vertical diz que deve-se isolar os grupos de risco conhecidos
Além disso, os grupos de risco podem não se
restringir aos perfis conhecidos até agora. O próprio Katz admite o
problema: "Certamente, embora a mortalidade seja altamente concentrada
em alguns grupos, ela não para por aí. Existem histórias comoventes de
infecção grave e morte por covid-19 em pessoas mais jovens, por razões
que desconhecemos".
No entanto, se for descoberto que o ideal é
isolar idosos e jovens, a proposta do isolamento vertical em quase nada
difere do que está sendo feito no atual confinamento que Katz critica.
Adicionalmente,
até chegar ao ponto em que existe a chamada "imunidade de rebanho", o
desejado na teoria do isolamento vertical, os cientistas estimam que ao
menos 3 em cada 5 pessoas da população de cada país precisariam ter sido
contaminadas.
"Não há como garantir que apenas os jovens sejam
infectados. Você precisa de 60% a 70% da população infectada e
recuperada para ter uma chance de desenvolver imunidade ao rebanho, e
não existe esse percentual de pessoas jovens e saudáveis nem Reino Unido
nem em qualquer outro lugar. Além disso, muitos jovens têm casos graves
da doença, sobrecarregando os sistemas de saúde e um número não tão
pequeno deles morre", alertou Nassim Nicholas Taleb, professor de
engenharia de risco da New York University, especialista nesse tipo de
modelo, em um artigo no jornal britânico Guardian em que expõe as falhas
na premissa do isolamento vertical que levaram o primeiro-ministro do
país, Boris Johnson, a mudar de posição sobre o assunto.
A desmobilização que a teoria produz
Por
fim, se a estratégica de isolamento vertical falhar, chega-se ao
problema seguinte: o colapso do sistema de saúde, abarrotado de doentes e
com falta de suplementos médicos e respiradores.
"Em situações
'normais', apenas um entre 5 pacientes em estado crítico morre, daí a
taxa de mortalidade (mortes por total de infectados) de 0,9% na China,
fora de Hubei (epicentro inicial da doença). Quando os hospitais estão
congestionados e o acesso a unidades de terapia intensiva é racionado, 9
em cada 10 pacientes em estado crítico morrem (daí a taxa de
mortalidade de 4,5% em Hubei)", afirma o economista italiano Luigi
Zingales em um artigo publicado na página da escola de negócios da
Universidade de Chicago.
Segundo Zingales, manter as pessoas em
casa e apoiar a economia não é uma questão do que seria moralmente
correto para os governos, mas do que seria economicamente mais
vantajoso.
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Os críticos do isolamento vertical, a maior parte
dos médicos, dizem que o modelo extrapola inferências a partir de
premissas pouco confiáveis
Ele examina o caso americano. A OMS estima que algo
em torno de 200 milhões de pessoas serão infectadas pelo vírus nos
Estados Unidos. Dessas, 5% chegarão a condições críticas - algo como 10
milhões de pessoas.
A Agência de Proteção Ambiental dos EUA
estima que cada vida humana valha US$ 10 milhões para a economia. Esse
valor é um terço menor em pessoas com mais de 65 anos - em torno US$7
milhões.
De acordo com o raciocínio de Zingales, se os EUA
enfrentarem o caos e perderem 9 em cada 10 desses casos críticos, ou
seja, 9 milhões de pessoas, ele terá perdido financeiramente mais de US$
60 trilhões - mais de duas vezes o PIB anual do país.
Logo,
segundo ele, faria sentido aprovar o pacote de US$ 2 trilhões de
estímulo à economia e arcar com o custo da paralisação da atividade
econômica por quase quatro meses, já que o risco de tentar impedir essa
queda poderia levar a uma catástrofe de custo exponencialmente maior.
Para
os críticos do isolamento vertical, ao propalar uma possível solução
que pode se provar falsa, esses pesquisadores dariam à pandemia condição
de se espraiar.
Epidemias funcionam em cadeia, com a
contaminação espalhando em cascata por diferentes e mais numerosos
grupos, de modo que, se não foi interrompida cedo, pode ser impossível
contê-la mais tarde.
"A mensagem de Ioannidis nos coloca em risco
de atrasar a resposta crítica e dessensibilizar o público para os riscos
reais que enfrentamos. Para um problema dinâmico e complexo, como o
coronavírus, sempre queremos mais informação, mas temos que lidar com o
que temos. Este não é um projeto de pesquisa acadêmica. É vida real, em
tempo real. Diante da grave incerteza, não podemos adiar a ação
aguardando mais evidências ou eliminar riscos catastróficos, alegando
que é irracional tomar medidas defensivas drásticas" afirma Crane. (BBC News Brasil)
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