domingo, 6 de março de 2022

 


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Flores brancas e amarelas

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Foi o menos belo dos belos.

Mil palavras belas eram poucas quando eu traduzia seus olhares.

Exceção feita a isso, nada de especial capaz de despertar inveja alguma ou manifestações de amor mais dedicado.

 Com a maior das atenções, sintonizava-se comigo.

Nada alterava seu humor esperto, seus silêncios compraziam-me, mais ainda quando, ao manifestar seu calado afeto, acercava-se de mim.

 Ao ouvir minha voz, rápido como um raio, emergia do nada.

Eu, acostumado a tais aparições miraculosas, na eventual ausência das mesmas, punha-me preocupado com quem tinha espaço no recanto de meus incompreensíveis afetos. Tanto, por não entender qual razão entristece um homem, velho e descrente, ao enfrentar certas perdas.

 Nos últimos dias, o querido felino deixara de aparecer, para farejar a placa do carro, à minha chegada. Até o dei por perdido. Quem sabe – pensei com meus botões –, alguém se encantara com seu olhar falante, pelo ralo, pisar tranquilo, compreensível miar.

 Qual o quê! Dois dias após, ressurgiu. Esquálido, de mim aproximou-se como a implorar socorro. Condoí-me ao ver o amigo das silenciosas horas, em insistentes ais, à exaustão, repetidos. 

 Ontem, dia da lavagem da Igreja do Bonfim, em Salvador, em paralelo a similar evento em minha província, quando da visita ao sítio, deparei-me com o companheiro quase inânime. Eclodira um tumor em seu ombro esquerdo. Acorri à veterinária: antibiótico, anti-inflamatório, inúmeros cuidados.

 Hoje, ao abrir o portão, nenhum sinal de vida do menos belo dos belos. Fui encontrá-lo onde o acomodara na véspera, agora no estertor dos moribundos. Mesmo assim, ao reconhecer minha voz, tentou levantar-se, esforço inútil.

 Acudi-o, coloquei-o em panos limpos, sua mortalha; tentei ministrar-lhe água, leite, medicação; sem sucesso, dentes cerrados, olhar congelado. Ao pronunciar, incessantes vezes, “meu gatinho”, “meu gatinho”, ele empinou as orelhas, único sinal de vida. Esgotei-me em quase lágrimas, tentando animá-lo. Foi quando, mirando-me e em um supremo esforço levantou-se desajeitadamente, derribando-se a seguir. Testemunhei, então, o último olhar amoroso de sua vida.

 Acomodei-o, deixando-o na paz de seu silêncio, incrédulo estava eu de sua morte. Voltei-me aos cuidados do dia-a-dia, sempre sintonizado com o amigo sofredor. Transcorrida uma hora, o rigor do corpo falou por si mesmo. Com o carinho de quem perde ente querido, pus-me a meditar quanto às irreparáveis perdas sofridas ao vivermos muito.

 Escavei a cova junto às de outros bichanos, meus mestres na arte de amar os animais: todos reunidos à sombra do majestoso flamboyant vermelho à entrada da chácara.

 Cumprido o rito, joguei a terra do adeus e, para dizer de meu afeto depus, sobre a cova, flores brancas e amarelas. A seguir, na solitária companhia de fugidias e indisfarçadas lágrimas, fiz questão de retratar a insidiosa sina.

 Amanhã há de ser outro dia.



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