domingo, 20 de março de 2022

 

Palavras ao vento

Por Hugo A de Bittencourt Carvalho

 

 

 

* Inverno chegando *

Duas abençoadas louras acompanham-me em dia de celestiais prantos. Estes, evocadores de outros muitos, por meus olhos vertidos, ao lembrar entes amados sumidos para sempre. São prantos aos milhares, derramados por pesarosos patrícios ao perderem os seus na pugna contra a sanha assassina da aflitiva pandemia.

 Inverno chegando.

Tais benditas louras, além de suarem a mais não poder, são só atenções para comigo. Felicitam-me, malgrado o (in) desejado avançar dos anos, por sobreviver ao presente naufrágio de vidas mundo afora. Claro, não mais posso dar-me ao luxo de dispensar colete salva-vidas. Ao contrário de quando nadava de braçadas, não contava o tempo, abraçado apenas à certeza de que tudo daria certo, a qualquer hora, em qualquer ocasião.

 Inverno chegando.

As geladas amigas a meu lado, entre si, comentam minhas digressões. Conhecem-me, sabem não prescindirei da companhia delas apesar do frio inverno. Na vida, marujei de enjoar e, após tantos sacolejos, ora a bombordo, ora a estibordo, aprendi ser bobagem contar vantagens. Evadi-me, por isso, dos oceanos urbanos e aprumei meu saveiro em direção às águas mansas de sereno lago interiorano.

 Inverno chegando.

As primeiras louras foram-se; garrafas vazias recomendam retorno ao freezer.

Não mais tenho tempo para ser pai, outra vez, de filhos a quem tanto amo, frutos de minhas navegações em busca do paraíso perdido. Hoje, sou caranguejo, arranho a praia e rememoro marinhas titulares de (im) previsíveis agruras. Dia 21 de junho último, meu derradeiro filho aniversariou; quando veio ao mundo 21 invernos atrás eu, dos mesmos, 59 tinha nos costados. Célere, aproxima-se o tempo do estaleiro definitivo. A contagem é inversa: um ano a mais para o filho, um ano a menos para mim. Assim, aquieto-me na marina onde outros velhos saveiros, velas arriadas, estão ancorados.

 Inverno chegando.

Fadas aparecem do nada, surge alma caridosa com duas siberianas louras ávidas do calor de embriagadores beijos; beijo-as.

Do portão de minha casa, noite ainda criança, quando festejávamos o filho aniversariante, mirei a rua. O povaréu do povoado se postava a armar fogueiras, na contramão do bom senso ao recomendar-se evitá-las nas atuais circunstâncias. Contra a tradição, não há pandemia bastante capaz de sufocá-la. Cigano, acampei em outras terras, ainda estranho tais comportamentos. Casos, casas, casamentos se misturam com o cicio das geladas companheiras.

Inverno chegando.

As louras recém-vindas, animadas e alegres, inserem-se no contexto; por ora silentes, desconhecem o quanto até aqui se falara. Posso, portanto, mudar o rumo da conversa.

Sob efeito de recente leitura sobre a escravidão - obra de Laurentino Gomes -, evoco como têm sido encarados os negros em nossa terra. Intento entender a continuidade de discursos acerca da manutenção de um racismo disfarçado. Ante a importância de se consagrarem medidas em favor do emponderamento da etnia negra no país negro onde vivemos, em certas horas, no meu íntimo, o dito e o contradito se digladiam com seus respectivos (im) pertinentes argumentos.

 Inverno chegando.

As novas louras, tão atraentes quanto as demais, apuram ouvidos enquanto aplacam minha embriagadora sede; contenho-me e prossigo.

Verdade seja dita, hoje em dia encaro como um dos padrões de beleza cabelos atados ao alto das cabeças das mulheres negras: luzem a ninhos de majestosas águias.  Anos passados? Achava-os horrorosos.

Além dos pelos e apelos, passei a entender a beleza plástica da religião trazida a bordo dos execráveis navios tumbeiros. Talvez seja a única manifesta religião na qual humanos se refastelam com as comidas prediletas dos Orixás. Haverá coisa mais bela? Nada da complexidade, à custa de manobras linguísticas e dogmas, de difícil entendimento, da consagração das espécies e sua transubstanciação nisso ou naquilo.

 Inverno chegando.

As louras remanescentes sugerem deixar de lado divagações de somenos importância. Segundo elas, outros o fizeram com maestria: Eça, em O Crime do Padre Amaro e Aloysio de Azevedo, em O Mulato.

Clamam por um pouco de humor alegre e descontraído para animá-las e justificar a fama de excelentes parceiras, tanto em tramas, quanto em dramas. Ante tal inegável apelo, relembro finado amigo Mário Portugal, fã confesso da negritude: referia-se às mulatas da terra com a elegância de um Bonjour, Madame!  Em momentos nos quais os relógios do mundo combinavam dar um tempo, Mário, em tal liberdade temporal, proclamava seu amor às mulatas; afirmava não haver mulheres iguais no mundo.

Sem, todavia, perceber exteriorizava o preconceito racial.

O problema - dizia ele com ar maroto – surgia quando, consumado um relacionamento afetivo, visitava a família da parceira: meninos de cabelos crespos e meninas com trancinhas espichadas apareceriam gritando: Titio! Titio! Titio!

 



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