terça-feira, 3 de março de 2020

Arrependido e ameaçado: confissões de um ex-terraplanista brasileiro


Em menos de cinco anos, o mundo do capixaba Eduardo Dias, de 32 anos, virou de cabeça para baixo. Ou melhor, deixou de ser um disco para virar uma bola, e o canal de YouTube que chegou a difundir terraplanismo passou a combatê-lo.
Hoje, o músico revela uma ponta de vergonha pelo "erro grotesco" em sua vida, diz ser um dos poucos "ex-terraplanistas confessos" e se autodenomina o "maior inimigo da Terra plana no Brasil".
Levado por sua curiosidade por história e conspirações, há cerca de quatro anos Eduardo se deparou na internet com teorias de que a Terra seria plana e não um globo — um fato comprovado há séculos de inúmeras formas pela ciência.
A conversão de Eduardo, que completou o ensino médio e está com a matrícula trancada em uma faculdade de música, aconteceu rapidamente.

"Eu já não acreditava que o homem tinha ido à Lua, gostava de todas essas conspirações. Com a Terra plana foi muito rápido [o convencimento]. Ao assistir à transmissão desses dois conspiracionistas, comecei a entrar em contato com as pessoas que estavam ali no chat. Também entrei em grupos de terraplanistas no WhatsApp. Foi aí que o bicho começou a pegar: me tornei terraplanista", lembra, rindo durante a entrevista por telefone para a BBC News Brasil.
O "auge" do terraplanismo do músico capixaba aconteceu em 2016, quando participava de grupos temáticos no WhatsApp, realizava experimentos para refutar a esfericidade do planeta e chegou a produzir vídeos defendendo a conspiração em seu canal no YouTube.
Mas a fase durou pouco, coisa de dois meses. Hoje, em seu canal Sistemático, Eduardo publica vídeos com chamadas e títulos provocativos como "A Lua detona a Terra plana", "Vamos debater terraplanilsons" e "Mais uma vez provaram o globo".

O início no terraplanismo

Ele explicou melhor a história dessa guinada em sua vida à BBC News Brasil.
"O terraplanismo entrou na minha vida de uma forma meio inusitada. Fui criado em igrejas evangélicas, aos 16 anos comecei a ser chamado por pastores para tocar (música) e depois comecei a fazer um curso de Teologia. A paixão que eu tinha era pela música, não ligava muito para as doutrinas e pregações. Sempre fui um crente rebelde: gostava de entender e debater assuntos como o dízimo e os assuntos mais polêmicos dentro da igreja", relata Eduardo, que nasceu e mora em Vila Velha, Espírito Santo.
"No curso, comecei a me interessar por alguns assuntos controversos que a própria Teologia abordava. Passei a seguir canais conspiracionistas que falavam contra igrejas católicas, evangélicas... Nesse tempo, eu estava parando de frequentar as igrejas e caí em uma transmissão ao vivo com dois grandes conspiracionistas que abordavam o terraplanismo na época. Achei o assunto interessante e que as questões da Terra plana faziam sentido."
Foi ao tentar produzir vídeos sobre o assunto para seu canal, aberto inicialmente com a intenção de ter debates entre leigos sobre questões religiosas, que ele percebeu os "furos" do terraplanismo.
"Comecei a fazer alguns vídeos sobre a Terra plana, mas não postava. Tentava fazer algum roteiro, criar imagens, e via que não tinha sustentação alguma."
"Posso dizer que foi nesse período que eu quis acreditar na Terra plana, ou ignorar a realidade. Mas todo assunto que eu ia levantar para 'refutar o globo', eu quebrava a cara. Aí eu levava questionamentos para os grupos e comecei a ver que algumas pessoas ali eram simplesmente desonestas."

'Muito difícil reconhecer erro tão grotesco'

Eduardo conta que chegou a postar um vídeo sobre como a linha do horizonte provaria a ausência de curvatura da Terra — mas o material foi apagado em poucas horas, ao ser contestado por um internauta que logo se tornaria amigo e personagem importante em sua "reconversão" à defesa da Terra como um globo.
Apesar de dizer que já recebeu mais de 200 e-mails de pessoas relatando terem deixado de ser terraplanistas, algumas com a ajuda de seus vídeos, o capixaba diz que é raro uma pessoa com esse passado se revelar — o que no seu caso, acabou "acontecendo naturalmente".
"É muito difícil reconhecer um erro tão grotesco com esse. Quando você para para pensar, você ignorou tudo o que você aprendeu", diz o youtuber.
"É raro você ver um ex-terraplanista confesso... Tanto que a maioria dos ex-terraplanistas a gente não sabe que existe. Muitos comentam comigo e somem. As pessoas preferem não falar que acabaram crendo nisso porque vão ser chamadas de burras."
De acordo com uma pesquisa do Instituto Datafolha publicada em julho do ano passado, 90% dos brasileiros consideram que o formato do planeta Terra é redondo; 7% plano; e 4% dizem não saber.
Eduardo afirma que não se sente culpado ou responsável em parte por propagar as ideias equivocadas que hoje abomina.
"Fui ignorante, burro pra caramba, mas não cheguei a enganar ninguém. Acho que me redimi: desde os primórdios dos canais terraplanistas, estou combatendo-os — até com uma dificuldade, porque não sou da área da ciência. Pelo menos eu comprei a briga pro lado certo e hoje sou o maior inimigo deles."
Mas, como diz em alguns de seus vídeos, "a internet não esquece". Mesmo nas publicações mais recentes no canal de Eduardo, é comum um ou outro internauta lembrar nos comentários que o youtuber já foi terraplanista — tipo de recordação que ele reconhece incomodar "um pouco", pois se arrepende de não só ter acreditado nisto como se exposto.
No entanto, o capixaba diz que, ao menos na família, conseguiu na época manter seu terraplanismo bastante "íntimo" — a mãe e a esposa, por exemplo, não acompanharam a breve empreitada do músico na conspiração, que era cultivada por ele sobretudo na internet.

'Líderes de seita' x honestos

Nesse vasto mundo virtual, Eduardo conta que começou a perceber dois tipos de pessoas entre os terraplanistas.
O primeiro é o de pessoas que ele entende como "honestas": esbarraram no conteúdo terraplanista, acharam que ele fazia sentido e caíram no conto de outros que acabam faturando com a teoria da conspiração. E, eventualmente, estão abertas a reconhecer que erraram.
Já pessoas do segundo grupo nem mesmo acreditam de verdade na Terra plana mas fazem disto uma fonte de renda, segundo ele — monetizando vídeos e outros tipos de conteúdo em plataformas como YouTube e Patreon. E, diferentemente do primeiro grupo, são pessoas que se mostram irredutíveis diante de provas de que a Terra é um globo.
"Fiz uma pesquisa no Stellarium (um software para visualização do céu) sobre o Cruzeiro do Sul e vi que vários pontos não batiam com o modelo da Terra plana. Levantei isso no grupo e ali vi que eles são desonestos, pois eles não queriam nem debater e já davam uma desculpa."
"Vendo a reação dos líderes dessa seita, percebi que são pessoas que estão ali porque precisam ter um grupo. Parece que são pessoas que sempre tentaram ter algum status e não conseguiram, são frustradas e encontraram refúgio na Terra plana."
Uma outra reação dos terraplanistas vivenciada por Eduardo é mais recente, resultado dos vídeos que produz refutando a Terra plana. Ele relata já ter recebido ameaças anônimas pela internet, como emails e mensagens de WhatsApp — "algumas até infantis" e outras mais preocupantes, como comentários identificando lugares em que passou em seus vídeos. O capixaba diz que avalia como proceder sobre as ameaças.
"Por um tempo, cheguei a desligar todos os vídeos sobre Terra plana no meu canal, comecei a fazer outros tipos de vídeo, de gameplay, de música... Mas o pessoal pediu para eu voltar, eu fui relaxando com isso e agora voltei, mas tirando sarro. Hoje faço refutação da Terra plana, mas tirando bastante sarro para... aguentar. É muito complicado você ver que as pessoas não são terraplanistas, não acreditam no assunto, postam vídeos e são aplaudidas. Tudo errado."

Experimentos com superzoom

Quando conversou com a BBC News Brasil, em uma sexta-feira, Eduardo tinha acabado de voltar da praia em sua cidade, para onde tinha ido fazer experimentos e gravar um vídeo. Ele usou uma câmera com superzoom de acordo com ele "idolatrada pelos terraplanistas" para mostrar diversas embarcações "desaparecendo" atrás da linha do horizonte, uma das evidências mais acessíveis da esfericidade da Terra.
A câmera foi comprada graças a uma vaquinha de assinantes do seu canal. Por conta de sua incursão de anos nas discussões sobre o formato da Terra, Eduardo tem também uma luneta, além de programas de computador.
Tarefas assim fazem parte da rotina de Eduardo e de outras pessoas que se reúnem principalmente no Whatsapp para combater terraplanistas, em grupos que incluem entusiastas amadores e profissionais da astronomia, da engenharia, geografia, entre outros.
"Tem muita gente que fala que nós, ao falarmos da Terra plana, acabamos dando audiência para eles. Mas não, porque isso é viral... Viral não precisa de apoio."
Eduardo, no entanto, vê diferença nas respostas de leigos que estão debatendo a Terra plana e cientistas.
"Um físico, por exemplo, nunca vai debater o equinócio com um terraplanista, porque vai detoná-lo com uma linguagem técnica — mas só quem vai entender são os alunos dele, pessoas que gostam de ciência, astronomia... A gente quer que terraplanista responda questionamentos de coisas que todo mundo consegue ver, por exemplo o movimento do Sol."

Influência sobre outros ex-terraplanistas

Segundo o youtuber, falar tanto sobre o formato da Terra não estava em seus planos, mas é justamente o retorno de pessoas, inclusive cientistas, que o motiva a continuar. Hoje, ele divide esta tarefa com shows e gravações em seu trabalho como músico.
Em sua jornada pelo universo das conspirações e crenças, Eduardo diz não ter religião hoje e "não gostar de nenhuma teoria da conspiração". E o mundo dá mesmo voltas: se há cinco anos o músico fazia parte de um grupo que questiona não só o formato esférico da Terra, mas também partes do dito establishment — como a mídia, as escolas e a Nasa, a agência espacial americana —, hoje Eduardo chama de "linda" a história das missões espaciais.
"Já cheguei a defender a conspiração de que o homem não tinha ido à Lua, e quando entrei nessa, comecei a conhecer toda a história das missões espaciais, que é linda — todo o desenvolvimento da tecnologia, aquela luta, aquela corrida. Foi aí que comecei a defendê-las. Não quero dizer a palavra 'acreditar', porque ela tem a conotação da 'fé', mas sei que as agências (espaciais) estão certas, a gente consegue aferir o que eles passam."
"A mídia, sei que tem seu posicionamento, então entendo a crítica que as pessoas fazem a ela. Mas não desconsidero a mídia como uma fonte confiável, então para mim, as instituições têm seu valor sim. Não queria usar essa palavra, mas confio." (BBC News Brasil)

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