Arrependido e ameaçado: confissões de um ex-terraplanista brasileiro
Em menos de cinco anos, o mundo do
capixaba Eduardo Dias, de 32 anos, virou de cabeça para baixo. Ou
melhor, deixou de ser um disco para virar uma bola, e o canal de YouTube
que chegou a difundir terraplanismo passou a combatê-lo.
Hoje, o
músico revela uma ponta de vergonha pelo "erro grotesco" em sua vida,
diz ser um dos poucos "ex-terraplanistas confessos" e se autodenomina o
"maior inimigo da Terra plana no Brasil".
Levado por sua
curiosidade por história e conspirações, há cerca de quatro anos Eduardo
se deparou na internet com teorias de que a Terra seria plana e não um
globo — um fato comprovado há séculos de inúmeras formas pela ciência.
A
conversão de Eduardo, que completou o ensino médio e está com a
matrícula trancada em uma faculdade de música, aconteceu rapidamente.
"Eu
já não acreditava que o homem tinha ido à Lua, gostava de todas essas
conspirações. Com a Terra plana foi muito rápido [o convencimento]. Ao
assistir à transmissão desses dois conspiracionistas, comecei a entrar
em contato com as pessoas que estavam ali no chat. Também entrei em
grupos de terraplanistas no WhatsApp. Foi aí que o bicho começou a
pegar: me tornei terraplanista", lembra, rindo durante a entrevista por
telefone para a BBC News Brasil.
O "auge" do terraplanismo do músico capixaba aconteceu em 2016,
quando participava de grupos temáticos no WhatsApp, realizava
experimentos para refutar a esfericidade do planeta e chegou a produzir
vídeos defendendo a conspiração em seu canal no YouTube.
Mas a
fase durou pouco, coisa de dois meses. Hoje, em seu canal Sistemático,
Eduardo publica vídeos com chamadas e títulos provocativos como "A Lua
detona a Terra plana", "Vamos debater terraplanilsons" e "Mais uma vez
provaram o globo".
O início no terraplanismo
Ele explicou melhor a história dessa guinada em sua vida à BBC News Brasil.
"O
terraplanismo entrou na minha vida de uma forma meio inusitada. Fui
criado em igrejas evangélicas, aos 16 anos comecei a ser chamado por
pastores para tocar (música) e depois comecei a fazer um curso de
Teologia. A paixão que eu tinha era pela música, não ligava muito para
as doutrinas e pregações. Sempre fui um crente rebelde: gostava de
entender e debater assuntos como o dízimo e os assuntos mais polêmicos
dentro da igreja", relata Eduardo, que nasceu e mora em Vila Velha,
Espírito Santo.
"No curso, comecei a me interessar por alguns
assuntos controversos que a própria Teologia abordava. Passei a seguir
canais conspiracionistas que falavam contra igrejas católicas,
evangélicas... Nesse tempo, eu estava parando de frequentar as igrejas e
caí em uma transmissão ao vivo com dois grandes conspiracionistas que
abordavam o terraplanismo na época. Achei o assunto interessante e que
as questões da Terra plana faziam sentido."
Foi ao tentar
produzir vídeos sobre o assunto para seu canal, aberto inicialmente com a
intenção de ter debates entre leigos sobre questões religiosas, que ele percebeu os "furos" do terraplanismo.
"Comecei
a fazer alguns vídeos sobre a Terra plana, mas não postava. Tentava
fazer algum roteiro, criar imagens, e via que não tinha sustentação
alguma."
"Posso dizer que foi nesse período que eu quis acreditar
na Terra plana, ou ignorar a realidade. Mas todo assunto que eu ia
levantar para 'refutar o globo', eu quebrava a cara. Aí eu levava
questionamentos para os grupos e comecei a ver que algumas pessoas ali
eram simplesmente desonestas."
'Muito difícil reconhecer erro tão grotesco'
Eduardo conta que chegou a postar um vídeo sobre
como a linha do horizonte provaria a ausência de curvatura da Terra —
mas o material foi apagado em poucas horas, ao ser contestado por um
internauta que logo se tornaria amigo e personagem importante em sua
"reconversão" à defesa da Terra como um globo.
Apesar de dizer
que já recebeu mais de 200 e-mails de pessoas relatando terem deixado de
ser terraplanistas, algumas com a ajuda de seus vídeos, o capixaba diz
que é raro uma pessoa com esse passado se revelar — o que no seu caso,
acabou "acontecendo naturalmente".
"É muito difícil reconhecer
um erro tão grotesco com esse. Quando você para para pensar, você
ignorou tudo o que você aprendeu", diz o youtuber.
"É raro você
ver um ex-terraplanista confesso... Tanto que a maioria dos
ex-terraplanistas a gente não sabe que existe. Muitos comentam comigo e
somem. As pessoas preferem não falar que acabaram crendo nisso porque
vão ser chamadas de burras."
De acordo com uma pesquisa do
Instituto Datafolha publicada em julho do ano passado, 90% dos
brasileiros consideram que o formato do planeta Terra é redondo; 7%
plano; e 4% dizem não saber.
Eduardo afirma que não se sente culpado ou responsável em parte por propagar as ideias equivocadas que hoje abomina.
"Fui
ignorante, burro pra caramba, mas não cheguei a enganar ninguém. Acho
que me redimi: desde os primórdios dos canais terraplanistas, estou
combatendo-os — até com uma dificuldade, porque não sou da área da
ciência. Pelo menos eu comprei a briga pro lado certo e hoje sou o maior
inimigo deles."
Mas, como diz em alguns de seus vídeos, "a
internet não esquece". Mesmo nas publicações mais recentes no canal de
Eduardo, é comum um ou outro internauta lembrar nos comentários que o
youtuber já foi terraplanista — tipo de recordação que ele reconhece
incomodar "um pouco", pois se arrepende de não só ter acreditado nisto
como se exposto.
No entanto, o capixaba diz que, ao menos na
família, conseguiu na época manter seu terraplanismo bastante "íntimo" —
a mãe e a esposa, por exemplo, não acompanharam a breve empreitada do
músico na conspiração, que era cultivada por ele sobretudo na internet.
'Líderes de seita' x honestos
Nesse vasto mundo virtual, Eduardo conta que começou a perceber dois tipos de pessoas entre os terraplanistas.
O
primeiro é o de pessoas que ele entende como "honestas": esbarraram no
conteúdo terraplanista, acharam que ele fazia sentido e caíram no conto
de outros que acabam faturando com a teoria da conspiração. E,
eventualmente, estão abertas a reconhecer que erraram.
Já pessoas
do segundo grupo nem mesmo acreditam de verdade na Terra plana mas
fazem disto uma fonte de renda, segundo ele — monetizando vídeos e
outros tipos de conteúdo em plataformas como YouTube e Patreon. E,
diferentemente do primeiro grupo, são pessoas que se mostram
irredutíveis diante de provas de que a Terra é um globo.
"Fiz uma
pesquisa no Stellarium (um software para visualização do céu) sobre o
Cruzeiro do Sul e vi que vários pontos não batiam com o modelo da Terra
plana. Levantei isso no grupo e ali vi que eles são desonestos, pois
eles não queriam nem debater e já davam uma desculpa."
"Vendo a
reação dos líderes dessa seita, percebi que são pessoas que estão ali
porque precisam ter um grupo. Parece que são pessoas que sempre tentaram
ter algum status e não conseguiram, são frustradas e encontraram
refúgio na Terra plana."
Uma outra reação dos terraplanistas
vivenciada por Eduardo é mais recente, resultado dos vídeos que produz
refutando a Terra plana. Ele relata já ter recebido ameaças anônimas
pela internet, como emails e mensagens de WhatsApp — "algumas até
infantis" e outras mais preocupantes, como comentários identificando
lugares em que passou em seus vídeos. O capixaba diz que avalia como
proceder sobre as ameaças.
"Por um tempo, cheguei a desligar todos os vídeos sobre Terra plana no meu canal, comecei a fazer outros tipos de vídeo, de gameplay,
de música... Mas o pessoal pediu para eu voltar, eu fui relaxando com
isso e agora voltei, mas tirando sarro. Hoje faço refutação da Terra
plana, mas tirando bastante sarro para... aguentar. É muito complicado
você ver que as pessoas não são terraplanistas, não acreditam no
assunto, postam vídeos e são aplaudidas. Tudo errado."
Experimentos com superzoom
Quando
conversou com a BBC News Brasil, em uma sexta-feira, Eduardo tinha
acabado de voltar da praia em sua cidade, para onde tinha ido fazer
experimentos e gravar um vídeo. Ele usou uma câmera com superzoom de
acordo com ele "idolatrada pelos terraplanistas" para mostrar diversas
embarcações "desaparecendo" atrás da linha do horizonte, uma das
evidências mais acessíveis da esfericidade da Terra.
A câmera foi
comprada graças a uma vaquinha de assinantes do seu canal. Por conta de
sua incursão de anos nas discussões sobre o formato da Terra, Eduardo
tem também uma luneta, além de programas de computador.
Tarefas
assim fazem parte da rotina de Eduardo e de outras pessoas que se reúnem
principalmente no Whatsapp para combater terraplanistas, em grupos que
incluem entusiastas amadores e profissionais da astronomia, da
engenharia, geografia, entre outros.
"Tem muita gente que fala
que nós, ao falarmos da Terra plana, acabamos dando audiência para eles.
Mas não, porque isso é viral... Viral não precisa de apoio."
Eduardo, no entanto, vê diferença nas respostas de leigos que estão debatendo a Terra plana e cientistas.
"Um
físico, por exemplo, nunca vai debater o equinócio com um
terraplanista, porque vai detoná-lo com uma linguagem técnica — mas só
quem vai entender são os alunos dele, pessoas que gostam de ciência,
astronomia... A gente quer que terraplanista responda questionamentos de
coisas que todo mundo consegue ver, por exemplo o movimento do Sol."
Influência sobre outros ex-terraplanistas
Segundo o youtuber, falar tanto sobre o formato da
Terra não estava em seus planos, mas é justamente o retorno de pessoas,
inclusive cientistas, que o motiva a continuar. Hoje, ele divide esta
tarefa com shows e gravações em seu trabalho como músico.
Em sua
jornada pelo universo das conspirações e crenças, Eduardo diz não ter
religião hoje e "não gostar de nenhuma teoria da conspiração". E o mundo
dá mesmo voltas: se há cinco anos o músico fazia parte de um grupo que
questiona não só o formato esférico da Terra, mas também partes do dito establishment —
como a mídia, as escolas e a Nasa, a agência espacial americana —, hoje
Eduardo chama de "linda" a história das missões espaciais.
"Já
cheguei a defender a conspiração de que o homem não tinha ido à Lua, e
quando entrei nessa, comecei a conhecer toda a história das missões
espaciais, que é linda — todo o desenvolvimento da tecnologia, aquela
luta, aquela corrida. Foi aí que comecei a defendê-las. Não quero dizer a
palavra 'acreditar', porque ela tem a conotação da 'fé', mas sei que as
agências (espaciais) estão certas, a gente consegue aferir o que eles
passam."
"A mídia, sei que tem seu posicionamento, então entendo a
crítica que as pessoas fazem a ela. Mas não desconsidero a mídia como
uma fonte confiável, então para mim, as instituições têm seu valor sim.
Não queria usar essa palavra, mas confio." (BBC News Brasil)
Nenhum comentário:
Postar um comentário