Em 1989, a Fundação Ataulpho de
Paiva (FAP), instituição centenária dedicada ao combate à tuberculose,
começou a construir em Duque de Caxias (RJ) uma nova fábrica para
aumentar a oferta de uma vacina que só ela produz no país: a BCG,
aplicada em bebês para prevenir a doença, e também a Onco BCG, usada
especificamente no tratamento de câncer de bexiga.
Porém, mais de
30 anos depois do início da construção da fábrica em Xerém, bairro de
Duque de Caxias, a instalação ainda não está pronta. Após sucessivos
novos prazos, a fundação diz hoje que ela será inaugurada em 12 meses.
Apenas nos últimos dez anos, o projeto da nova fábrica foi contemplado
com pelo menos R$ 41,9 milhões em convênios com o Ministério da Saúde
(confira mais detalhes sobre estes gastos públicos abaixo).
Já
a atual fábrica da FAP no bairro de São Cristóvão, na capital
fluminense, que nas últimas décadas produziu a vacina BCG utilizada por
crianças no Brasil — com recomendação de vacinação universal pelo
governo brasileiro e a primeira do calendário nacional de vacinação
infantil, junto com a para hepatite B — foi interditada duas vezes pela
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) desde 2016.
O
laudo da Anvisa que motivou a interdição em 2016, obtido pela BBC News
Brasil via Lei de Acesso à Informação, diz que "a fabricação dos
produtos Vacina BCG e Imuno BCG [a marca da Onco BCG feita pela
instituição] pela Fundação Ataulpho de Paiva na fábrica localizada em
São Cristóvão (Rio de Janeiro - RJ) apresenta risco à saúde da população
brasileira e urge a necessidade de finalização das obras da nova
fábrica da fundação localizada em Xerém".
Com as interdições na
fábrica de São Cristóvão e sem a nova fábrica em Xerém funcionando,
problemas no abastecimento atrasaram a imunização de recém-nascidos com a
BCG nas maternidades e deixaram sem tratamento pacientes com câncer de
bexiga que precisam da Onco BCG, como mostrou a BBC News Brasil em
reportagens de julho e novembro de 2019.
No
caso da BCG, comprada pelo Ministério da Saúde para ser distribuída em
todo o país, o Brasil precisou recorrer emergencialmente a importações
de uma fornecedora indiana, o instituto Serum. Com isso, hoje, a pasta
considera que o fornecimento da BCG é regular no país, conforme afirmou
na última sexta-feira (5) por nota.
Neste ano, houve sinais de que a vacina BCG da Serum pode se tornar mais do que uma solução temporária.
Em
janeiro, servidores da Anvisa viajaram a Pune, cidade na Índia onde
fica a sede da Serum, para uma inspeção das chamadas Boas Práticas de
Fabricação. Em abril, foi emitido pela Anvisa um Certificado de Boas
Práticas para a BCG da Serum — um primeiro passo para a participação da
produtora estrangeira, através de uma empresa brasileira detentora do
registro, em licitações para compra da BCG pelo Ministério da Saúde.
Hoje,
a FAP é a única produtora da vacina no Brasil e, por isso, as compras
de lotes de BCG pelo governo federal foram feitas nos últimos anos
através da modalidade "inexigibilidade de licitação" — prevista na lei
das licitações quando o fornecimento só pode vir, por alguma razão, de
um único produtor.
Já a Onco BCG tem fornecimento descentralizado —
ou seja, hospitais credenciados fazem a compra do material e depois são
ressarcidos pelo Ministério da Saúde, uma vez que o acesso ao
tratamento é considerado um direito no âmbito no Sistema Único de Saúde
(SUS). Sem o produto nacional produzido pela FAP, hoje muitos pacientes
estão sem tratamento, enquanto quem pode recorre a importações que podem
custar milhares de reais.
Verbas do Ministério da Saúde e empréstimo do BNDES
Mas,
além das compras de doses pelo governo, a FAP recebeu por meio de
convênios milhões de reais ao longo dos anos para construir sua nova
fábrica em Xerém.
Criada em 1900 como Liga Brasileira Contra a
Tuberculose, a fundação, que depois passou a homenagear em seu nome seu
presidente perpétuo, o magistrado Ataulpho de Paiva (1865-1955), é
considerada uma entidade privada, sem fins lucrativos e filantrópica.
Por
meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) e consultas ao Portal da
Transparência, a BBC News Brasil identificou convênios do Ministério da
Saúde com a entidade que somam R$ 41,9 milhões e destinados
especificamente à nova fábrica em Xerém — este é valor total previsto
nos contratos, mas valores celebrados em um convênio são diferentes do
que foi efetivamente liberado ao longo do tempo. No caso destes
convênios, R$ 19,5 milhões (46,5%) foram efetivamente liberados até
hoje. Todos eles constam como ainda em vigência ou na fase de prestação
de contas.
Na realidade, esse montante é possivelmente maior, já
que a reportagem solicitou ao ministério dados dos gastos com o projeto
desde os anos 80, mas só recebeu informações sobre convênios a partir de
2012. Assim, a reportagem decidiu considerar apenas os contratos com
detalhes e valores aos quais conseguiu ter acesso e que mencionam
explicitamente a nova fábrica de Xerém. Há também pelo menos dois
contratos, um de 1991 e outro de 2008, que foram mencionados pelo
ministério em resposta à LAI como sendo destinados à nova fábrica, mas
sem valores do montante concedido nem detalhes do convênio. Estes também
não foram encontrados no Portal da Transparência — portanto, não foram
contabilizadas na reportagem.
Em uma solicitação de verbas para obras, que acabou sendo concedida por meio de um convênio de R$ 8,4 milhões (dos quais R$ 2,4 milhões já liberados), a própria instituição aponta em um documento de justificativa a data de início das obras, 1989.
"Ressaltamos
que, a Fundação Ataulpho de Paiva - Liga Brasileira Contra a
Tuberculose, é uma instituição que dedicou 116 anos de existência ao
combate à tuberculose, e tornou o Brasil sempre autossuficiente na
produção da Vacina BCG, nunca tendo havido a necessidade de importação
deste produto", diz a fundação na proposta de 2016 cadastrada na
Plataforma Mais Brasil.
Um texto de 2003 no site da Fundação
Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro
(Faperj) menciona que a obra recebeu também verbas do governo estadual
do RJ para ser finalizada, com previsão para funcionamento em 2005. Um
convênio de R$ 5,4 milhões, segundo o texto, foi assinado naquele ano
entre órgãos do governo federal e a Secretaria de Ciência, Tecnologia e
Inovação do RJ. A reportagem pediu aos órgãos envolvidos a confirmação
disto, mas não recebeu resposta.
O Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) também ajudou a financiar a
obra da nova fábrica prometida. Em 2011, o banco público emprestou R$
5,9 milhões à Fundação Ataulpho de Paiva por meio de um programa do
Ministério da Saúde que visava desenvolver e modernizar o parque
industrial brasileiro na área da saúde.
Segundo o contrato de
financiamento obtido pela reportagem, a entidade pediu o valor para
finalizar a construção e comprar novos equipamentos para a produção da
vacina. O dinheiro colhido com o banco representava 43% do que a
fundação declarou precisar para concluir a obra.
Nesse caso, a
fundação deveria obrigatoriamente devolver o dinheiro ao banco em 72
vezes parcelas a partir de abril de 2013, segundo o contrato. O BNDES
não informou se o empréstimo já foi pago, pois a divulgação da
informação "violaria o sigilo bancário" da entidade.
Em nota, o
BNDES afirmou que constatou a aplicação "correta" da verba por parte da
FAP. Porém, diz o banco, "para o pleno funcionamento da fábrica, foram
feitas novas exigências de equipamentos pelo órgão regulador (Anvisa).
Estas exigências demandam investimentos adicionais. Não houve nova
solicitação de crédito ao BNDES."
Na justificativa do convênio de
R$ 8,4 milhões celebrado em 2016, a FAP diz ainda que não só recebeu
verbas do ministério e empréstimo do BNDES, mas também recursos
financeiros "com participação da JAICA - Japan International Cooperation
Agency": "A Fundação Ataulpho de Paiva iniciou a construção de sua
unidade fabril em Xerém, Duque de Caxias, Rio de Janeiro, em 1989,
recebendo recursos financeiros do Ministério da Saúde, com participação
da JAICA - Japan International Cooperation Agency e com recursos
próprios".
Procurada, a representação em Brasília da agência de
cooperação japonesa, cuja sigla na verdade é JICA e não JAICA como diz o
documento, afirmou por email não ter registro de tal financiamento.
A
diretoria da Fundação Ataulpho de Paiva afirmou que o empréstimo obtido
no BNDES "se encontra em fase final de pagamento, faltando apenas cerca
de 10% do valor financiado". Já o suporte da JICA ocorreu por meio de
"apoio técnico" de um médico da agência no início do projeto, "sem
envolver recursos financeiros", segundo escreveu a FAP à reportagem.Click aqui e continue lendo matéria no BBC News Brasil.
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