Em meados de abril, o conceituado
patologista da Universidade de São Paulo (USP) Paulo Saldiva falava ao
vivo na TV sobre a epidemia de covid-19 quando não se conteve e começou a
chorar em frente às câmeras.
"Naquela época, tinha gente negando
a existência ou minimizando o impacto da doença, então fui dizer para
as pessoas se cuidarem porque nós da saúde estávamos pagando um preço
alto. Aí lembrei-me da Carmen e de outras pessoas queridas e me
descontrolei um pouco", diz Saldiva, médico e professor com 40 anos de
experiência, à BBC News Brasil.
Para muitos na comunidade de
médicos atuando nos fronts de batalha contra a covid-19 no país, o choro
de Saldiva talvez dispensasse explicação.
A notícia da
internação da pneumologista Carmen Valente Barbas circulara dentro e
fora do Brasil, abalando a moral das tropas na guerra contra um inimigo
pouco conhecido.A médica brasileira que contraiu covid-19 e foi salva pelo método de ventilação que ela ajudou a criar
Isso
porque a médica dos hospitais das Clínicas e Albert Einstein,
pesquisadora e professora com 60 anos de idade e mais de 35 de carreira,
é uma sumidade internacional em ventilação mecânica, usada no
tratamento de casos graves de Covid-19.
Na
reportagem a seguir, com depoimentos da própria Carmen Barbas e de
colegas, confira a história de como uma mulher que dedicou a carreira a
salvar vidas e formar médicos teve sua vida salva pelas técnicas que
ajudou a criar - e pelos médicos que treinou.
Reconhecimento internacional
Filha
do também pneumologista e ex-professor da Faculdade de Medicina da USP
João Valente Barbas, Carmen seguiu os passos do pai. Ela se formou na
USP e ali iniciou, em 1995, seu doutorado em ventilação mecânica.
Em 1998, um estudo clínico liderado por ela e pelo colega Marcelo Amato foi publicado na New England Journal, revista científica americana de grande impacto.
Até então, as chances de um paciente com doença pulmonar aguda morrer ao receber ventilação mecânica eram altas.
Em
sua pesquisa, Carmen e seu grupo levantaram a hipótese de que a própria
ventilação pudesse estar danificando o pulmão dos pacientes.
"Estávamos
estudando a ventilação mecânica em pacientes com Síndrome do
Desconforto Respiratório Agudo, a SDRA", diz Carmem à BBC News Brasil.
"Na época, a mortalidade dessa síndrome era 70%, então, todo mundo que
trabalhava em terapia intensiva ficava desanimado, porque você ventilava
o paciente e 70% deles morriam."
Naquele tempo, explica,
pacientes com a síndrome eram ventilados com o mesmo volume corrente - o
volume de ar que entra e sai do pulmão durante a ventilação mecânica -
usado em cirurgias.
"Numa cirurgia, quando você faz uma anestesia
geral, você intuba e ventila o paciente. Só que o pulmão lesado pela
SDRA tem uma complacência mais baixa, ele é mais duro. Quando você
colocava volume corrente alto, isso gerava pressões muito altas no
sistema respiratório e acabava lesando mais o pulmão."
Carmen e seu grupo passaram a ventilar esses pacientes com um volume corrente mais baixo, entre outros ajustes.
Ao
final do estudo clínico, o número de mortes entre pacientes tratados
com a nova técnica caiu para 40%. Em 2000, um grande estudo americano
confirmou, também na New England Journal, que a abordagem do grupo da USP era muito melhor.
Desde
então, o índice de mortes de pacientes com SDRA caiu ainda mais, para
30%. E a equipe liderada por Carmen e Amato ganhou voz internacional,
ajudando a transformar a ventilação mecânica no mundo.
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Carmen Barbas seguiu os passos do pai, também pneumologista |
A técnica é conhecida hoje como Ventilação Protetora Pulmonar.
"Carmen
e sua equipe são um dos líderes na comunidade global (de intensivistas e
pneumologistas)", diz à BBC News Brasil o italiano Paolo Pelosi, médico
intensivista e professor da Universidade de Gênova, na Itália, colega e
amigo da médica há 20 anos.
O tratamento de pacientes em
Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) é complexo, então são necessárias
várias estratégias diferentes, explica.
"A técnica proposta por Carmen é parte de um conjunto de abordagens discutidas e aplicadas no mundo."
O que Carmen talvez jamais esperasse é que um dia seria salva por essa técnica.
Chegada do coronavírus
Em março de 2020, médicos brasileiros começavam a se dar conta de que o novo coronavírus era realmente perigoso.
"Estudando
vírus desde muitos anos, a gente vê que esse novo vírus é muito
diferente, muito agressivo, sobrevive em temperaturas muito altas, o que
não é normal para vírus respiratórios", diz Carmen.
Ela conta
que chegou até a escrever um artigo para a Sociedade Paulista de Terapia
Intensiva esclarecendo a população sobre o coronavírus.
Por sua idade, e por ser hipertensa, Carmen estava no grupo de risco.
"Estava
tomando todas as medidas preventivas, atendendo pacientes de máscara,
não deixando eles chegarem muito perto. Com colegas, fui uma das
primeiras a dizer, 'não chega perto, vamos manter distância'. Parei de
beijar os colegas, de dar a mão para os pacientes, sempre com o álcool
gel pendurado na bolsa."
Os primeiros sintomas apareceram no dia 19 de março.
"Comecei a ter um pouquinho de dor de garganta, um pouquinho de tosse, uma dor no corpo bastante importante."
Ela não estava cuidando de pacientes com coronavírus. Mas começou a ficar muito cansada.
"Qualquer coisa que eu fazia era uma fadiga absurda. 'Tem alguma coisa estranha acontecendo', eu falei."
Carmen
foi ao hospital pedir para ser testada. Sem os sintomas clássicos - não
tinha febre nem oxigenação baixa - teve de insistir. O teste foi feito
no dia 23. O resultado chegou no dia 27: a médica contraíra a Covid-19.
"Vi no computador, positivo. Telefonei para os colegas pedindo para ser internada porque eu estava muito cansada."
Dilema na UTI
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Gustavo Faissol Janot, chefe da equipe que intubou e cuidou de Carmen durante sua internação na UTI do hospital Albert Einstein |
Carmen foi para o
hospital Albert Einstein, onde trabalha há mais de 30 anos como
intensivista. Inicialmente, seu estado não era crítico, então foi
encaminhada à enfermaria. Mas como é comum em pacientes com Covid-19,
seu quadro se agravou rapidamente.
"Fui internada no dia 27 à
noite. Dia 29 de manhã já me levaram para a UTI e me intubaram porque eu
estava com um quadro de insuficiência respiratória grave."
Ela
tinha dedicado a carreira aos pacientes, ao ensino e à ciência. Agora,
Carmen confiava sua própria vida à técnica que ajudara a desenvolver e
aos médicos que treinara.
"Fui para a UTI. Os colegas já estavam todos lá, pessoas conhecidas", lembra Carmen.
"Quando
você está se sentindo mal, quer aliviar aquilo. Eu estava tão
desconfortável, com tanta falta de ar, que na hora que fui anestesiada,
aquilo me aliviou."
Antes de "apagar", diz, ouviu as palavras da anestesista Roseny Rodrigues:
"Pode ficar sossegada porque vamos cuidar muito bem da senhora."
Na
liderança da equipe que iria intubar e cuidar da ventilação mecânica de
Carmen estava um ex-aluno de doutorado da médica, o intensivista e
clínico geral carioca Gustavo Faissol Janot. Ele trabalha com Carmen há
16 anos.
"A Carmen sempre foi nossa grande mentora. Vê-la doente,
com necessidade de intubação, foi um dos momentos mais difíceis, senão o
mais difícil, da minha carreira", diz Janot à BBC Brasil.
A pressão sobre ele foi tão grande que Janot decidiu sair da sala.
"Nesse momento, dada minha proximidade com ela, pedi para não estar presente na intubação", diz.
"Quando
você tem envolvimento emocional com a pessoa, tende a evitar fazer
procedimentos invasivos porque isso pode mudar a forma como você faz o
procedimento e colocar o paciente em risco", explica.
Roseny Rodrigues assumiu a tarefa.
Feita a intubação, Janot retornou à UTI.
Agora,
segundo os preceitos da Ventilação Protetora Pulmonar, era preciso
ajustar o respirador para ventilar gentilmente o pulmão da paciente -
evitando danos para o órgão - e monitorar cuidadosamente seu progresso,
24 horas por dia.
Foi difícil dormir naquela noite, lembra Janot.
"Meu
pensamento não saía da UTI. Às 3 da manhã, acordei e dei um pulo da
cama. Eu tinha sonhado com a Carmen dizendo, 'vai checar meus exames,
não vai me deixar'. Então fui ao computador checar os exames da
madrugada."
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