O Conselho Nacional de Saúde (CSN),
instância deliberativa do Sistema Único de Saúde (SUS) e integrante do
Ministério da Saúde, publicou um documento recomendando
que órgãos de saúde de todo o país adotarem as chamadas Práticas
Integrativas e Complementares em Saúde (Pics) para auxiliar no
tratamento de Covid-19. As Pics são terapias que não tem eficácia
comprovada cientificamente, como homeopatia, reiki, florais, acupuntura
etc. e normalmente são recomendadas como complemento aos tratamentos com
fármacos comuns.
“Neste momento, em que não há ainda
medicação para a cura, vários profissionais estão utilizando as práticas
integrativas como forma de complementar a assistência. Estamos
conversando com diversas pessoas e sabemos de alguns registros com a
melhora em alguns tratamentos, que estão sendo realizados em nível
nacional”, afirmou em comunicado Simone Leite, coordenadora do setor de
práticas integrativas do CNS.
Para grande parte da comunidade
científica, o uso dessas técnicas em sistemas públicos de saúde não se
justifica devido a falta de evidências sólidas sobre sua eficácia.
Atualmente, o Sistema Único de Saúde (SUS) oferece 29 terapias que se
enquadram como Pics. A nova recomendação salienta que elas devem ser
utilizadas contra a Covid-19 de forma apenas complementar, sem
substituir métodos de eficácia comprovada.
“A nota do CNS veio poucos
dias depois de a Organização Mundial da Saúde (OMS) emitir uma
orientação alertando contra o uso de terapias sem comprovação científica
no combate à Covid-19. Dessa forma, o Conselho vai na contramão da
tendência internacional”, diz Natália Pasternak, microbiologista do
Instituto de Ciências Biomédicas da USP e diretora do Instituto Questão
de Ciência, associação sem fins lucrativos que defende o uso de
evidências científicas para formular políticas públicas.
Para formular a recomendação, o CNS se baseou em um documento que
reúne diversas pesquisas publicadas sobre as práticas indicadas. Mas,
das 37 referências citadas, apenas três estudos se referem
especificamente a Covid-19, e todos têm foco na fitoterapia da medicina
tradicional chinesa combinada com as Pics. Fitoterapia, vale explicar, é
o uso de plantas com propriedades medicinais – e essas, evidentemente,
podem fazer efeito. Ou seja: os estudos não abordam as Pics
isoladamente.
Além disso, o próprio documento
ressalta que essas pesquisas precisam passar por revisões para atestar
sua veracidade. “Ou seja, sugere-se o uso de PICs com base em
‘evidências’ cuja qualidade sequer foi auferida”, diz Pasternak.
Outro argumento utilizado pelo CSN é
que a recomendação também se baseia em orientações prévia da OMS sobre
práticas integrativas. De fato, a OMS já defendeu tais técnicas no
passado, em diferentes ocasiões.
Mas a pandemia é um cenário totalmente diferente, e o órgão engrossou o tom para a ocasião. Uma nota um pouco contraditória
divulgada no começo de maio, intitulada “A OMS apoia a medicina
tradicional comprovada cientificamente”, afirma que mesmo no caso de
terapias que derivam de práticas tradicionais e naturais, é essencial
“estabelecer a eficácia e segurança através de rigorosos testes
clínicos”. Ou seja: as Pics podem até não fazer bem, mas é importante
que elas não façam mal.
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A mudança incisiva no discurso da
organização se deve, em partes, pelo cenário de desinformação
anticientífica criado pela pandemia. Despontam pelo mundo supostos
medicamentos milagrosos que curariam a Covid-19 facilmente – o mais
famoso é um chá natural supostamente descoberto pelo governo de
Madagascar, na África, que leva em sua base a planta artemísia.
O uso da bebida tem sido incentivado
até pelo presidente do país para tratar ou prevenir a infecção por
coronavírus. Não há nenhuma comprovação de sua eficácia, e é quase certo
de que a história não passe de uma grande farsa. Para piorar, a
promessa de uma falsa cura pode fazer com que a população se descuide de
medidas de prevenção ou faça uso da auto-medicação, o que pode ser
prejudicial à saúde, como alerta a própria OMS.
Cloroquina
A decisão do CSN também chamou a
atenção de pesquisadores porque, no mesmo dia em que publicou a
recomendação sobre as práticas integrativas, o Conselho pediu a
suspensão do protocolo que prevê o uso de cloroquina e hidroxicloroquina
no tratamento de pacientes com sintomas leves da Covid-19 – uma
orientação adotada recentemente pelo Ministério da Saúde. O motivo seria
a falta de evidências científicas sobre a eficácia desses fármacos.
Defensores
das Pics afirmam que não há contradição: todas as evidências
disponíveis levam a crer que a cloroquina e a hidroxicloroquina podem
ter efeitos colaterais graves – o que não se aplica à maioria das
terapias alternativas, que em geral são inofensivas e apenas
complementam o tratamento embasado cientificamente. Isso explicaria
porque o órgão barrou um, mas recomendou o outro.
Em entrevista ao jornal Folha de São Paulo,
Simone Leite, do CSN, reforçou esse argumento: a cloroquina seria um
tratamento específico para a Covid-19 que não possui comprovação,
enquanto as práticas como acupuntura, massagens e florais são
complementares à assistência médica, e não se propõem a curar a doença.
Além disso, as Pics ajudariam a controlar o estresse e ansiedade dos
pacientes.
Os críticos afirmam, porém, que em um
momento em que o sistema de saúde já enfrenta sérias dificuldades, a
concentração de recursos financeiros deve ser feita em setores cruciais
ao combate da Covid-19, como aquisição de equipamentos de proteção,
assistência aos profissionais de saúde, melhor comunicação do governo
com a população, etc.
“Sugerir que recursos sejam desviados
para a promoção de práticas baseadas em supostas ‘evidências’ cuja
qualidade ninguém se deu ao trabalho de avaliar é um desrespeito à
gravidade do momento vivido pela nação”, diz Pasternak. “Se a
preocupação é a saúde mental, o Conselho Nacional de Saúde teria agido
melhor se recomendasse ações de promoção do bem-estar que têm
embasamento científico adequado.” (Super Interessante)
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