sexta-feira, 5 de junho de 2020

Desabafo de um médico


Já passa das 4:00 e não consigo dormir. Estou no plantão num pronto atendimento. Os plantonistas não param. O ritmo é frenético. Qualquer paciente com queixa respiratória demanda um grande esforço. A entrada é diferente, as pessoas se equipam e tome capa, máscara, pijama, bota, luvas sobrepostas. Sendo ou não positivo. É suspeito. O substantivo é próprio, como nos filmes. É o bandido que traz a morte para um duelo ficcional. Capas e espadas. Jatos mortais esterilizantes. O medo é terror por todos os lados. O oxímetro é o juiz. Vai para a solitária ou não? Os sentimentos povoam as caras escondidas por traz das máscaras. Uma prisioneira foge do isolamento pois não aguenta mais o silêncio ensurdecedor. Os médicos a repreende enfaticamente: "quer matar a todos?". Ela resignada me olha com olhos que já morreram um pouco só da espera do seu teste rápido. Volta resignada e envergonhada para o seu cubículo. Os médicos que a repreenderam choram escondidos no misto de pena e pânico.
Enterprise. Sala de comando. Luzes piscam. Respiradores soam como sonares da vida. São a trilha sonora da ambiguidade tecnológica que busca a vida, mas prenuncia a morte. O comandante sereno busca soluções para o excesso de passageiros. Sem cápsulas de sobrevivência disponíveis na cidade. Todas lotadas. Um paciente jovem luta pela vida. Parece loucura, mas a tristeza da morte de uma passageira idosa com 83 anos é a esperança de vida para o rapaz. Triste ou alegre? Não consigo separar, compartimentalizar nada mais. O comandante consegue a vaga, mas, para desespero a única ambulância do Samu não está preparada para o transporte. Mas são 6 meses de pandemia, 2 de isolamento e não temos ainda transporte adequado nem suficiente? Depois de 2h de briga conseguimos a transferência. Mas só essa. Base em terra cheia. Nova base inaugurando. Nossa nave a estrela da morte? Não SOS Enterprise.

Ou será SOS FSA?

É eu continuo sem sono...

Seria bom ter sido apenas um sonho de ficção!

Kleber San Galo Curvelo - médico

Um comentário:

Cristóvam Aguiar disse...

Põ, Klebão, a analogia com a Enterprise foi ótima, e eu me lembrei do meu pós operatório do coração, no hospital Santa Isabel. Só quem passou por ali pode entender do que vc está falando. Terrível para médios, imaginem para pacientes. Se eu não gostaria d de estar em seu lugar, creio que vc também não gostaria de estar no meu. Mas, se eu me sinto feliz por teer um amigo como vc, imagino como seu pai, lá onde ele está, não deve estar orgulhoso. Parabéms amigo, pela sua sensibilidade, coragem e humanismo.