
Benditos os que não deixam de semear suas roças, ano após ano, sem praguejar
contra os deuses ou a sorte, sem deixar de recomeçar, com mais cuidado e mais
esperanças, as leiras do inverno que ainda vem, ainda que tarde a chegar
Bendito os que não tiram os céus dos olhos. Os que confiam. Os que acreditam
na própria imensidão e percorrem suas léguas. Bendita as cartas de Maria do
Alcoforado, bendito Shakespeare e seu soneto CXVI, Romeu e Julieta, Othelo e
Desdemôna, bendito meu coração que envelheceu sem ceder ao outono.
Mas agora, que são outros os anéis de Saturno, que a lua não tem dragões,
que domaram o sal do mar- tanto sal, tanto mar- e tudo é substituível, como
amar a mulher que desistiu das eternidades?
Como amar, na estreiteza de seu peito, se não guardam a perenidade que
desfaz os incrédulos; se não tem o desespero de quem faz sua lavoura arcaica,
sabendo ser única, a colheita da boca; se não têm fé e não talham a pedra da
caverna para serem lidas em outras vidas e nos reencontros?
Como amar, diante de um tempo de tantas incertezas, da urgência de tudo, e
da alma liquefeita? Como nunca partir dos cais se cais já não há, nas oferendas
delas?
Como amar sem tabuas de salvação, se tábuas, já não há, e permanecer entre
os disfarces de amor, se ele já não arde sem se ver? Como amar uma mulher, se
elas, antigas fiandeiras, já não tecem o fio do destino, e, delas, de suas
margens, já não podemos nos atirar em nossos frágeis barcos de homem ao mundo
que acaba no horizonte?
Bendita seja, a que resiste e não reza nas cartilhas do líquido e
temporário...
Maldito Shakespeare, maldito meu coração, que envelheceu, com a cobiça do
impossível.
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Modiglianni- Nu deitado. |
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