Gravações
e documentos da OMS, obtidos pela agência Associated Press, revelam
frustração da entidade com o governo chinês – que omitiu a sequência
genética do vírus e o fato de que ele é transmissível entre humanos,
além de ter ocultado casos durante fase crucial da pandemia
Durante o mês de janeiro, o governo
chinês omitiu informações cruciais para o combate à pandemia de
Sars-CoV-2, como o código genético do vírus, os números de infectados e
mortos em Wuhan, e o fato de que o vírus pode ser transmitido entre
pessoas. Essas são algumas das revelações de uma longa reportagem da agência Associated Press
– a mais tradicional do mundo, fundada em 1846 e com jornalistas em 106
países. A matéria se baseia em gravações de reuniões da OMS e em
documentos internos da organização, que foram obtidos pela AP, e conta
uma história bem diferente das versões oficiais sobre o surgimento da
pandemia, o comportamento das autoridades chinesas – e o papel da
própria OMS nesse processo.
No dia 27 de dezembro de 2019, a
empresa chinesa Vision Medicals sequenciou a maior parte do genoma do
novo vírus, e o compartilhou com autoridades de Wuhan e com a Academia
Chinesa de Ciências Médicas. Em 31 de dezembro, o governo chinês enviou
um grupo de cientistas para Wuhan. No dia 1 de janeiro, a OMS solicitou
oficialmente informações sobre o vírus às autoridades chinesas; que, no
dia 3, informaram que havia 44 casos e nenhuma morte. Até este ponto,
todos os passos observaram protocolos normais. A omissão de informações
começou a partir daí.
No dia 2 de janeiro,
cientistas chineses terminaram o sequenciamento completo do vírus. No
dia 3, o governo enviou uma nota confidencial, à qual a AP teve acesso,
proibindo todos os seus laboratórios de pesquisa de publicarem a
sequência genética do vírus, ou qualquer outra informação sobre ele, sem
prévia autorização. Nesse mesmo dia, o Centro de Controle de Doenças
chinês também sequenciou o RNA do vírus, confirmando seu código
genético. Em 5 de janeiro, a Academia Chinesa de Ciências Médicas
terminou sua própria análise.
Porém, mesmo com três análises
confirmando a estrutura genética do Sars-CoV-2, o governo chinês se
manteve em silêncio. Também em 5 de janeiro, o virologista Zhang
Yongzhen, do Shanghai Public Health Center, concluiu seu próprio
sequenciamento do novo coronavírus, e notificou o governo chinês. “O
vírus deve ser contagioso por vias respiratórias. Nós recomendamos tomar
medidas preventivas em locais públicos”, afirmou Yongzhen no documento,
obtido pela AP.
Nesse mesmo dia, a OMS afirmou
publicamente o contrário: não havia indícios de que o vírus poderia ser
transmitido entre humanos. A agência errou porque não havia recebido as
informações mais recentes do governo chinês – que, além de omitir esse
detalhe sobre a infectividade do vírus, só publicou seu código genético em 11 de janeiro, nove dias após tê-lo obtido (e seis dias depois de tê-lo confirmado por três análises).
Não foi a única omissão. Entre os
dias 5 e 16 de janeiro, a cidade de Wuhan não reportou novos casos da
doença – que, como dados comprovariam mais tarde, continuaram ocorrendo,
mas foram escondidos pelas autoridades locais.
Por fim, as autoridades chinesas só revelaram que o vírus era
transmissível entre pessoas, sua característica mais importante, no dia 20 de janeiro.
A omissão do código genético, o
ocultamento de casos e de informações sobre a infectividade do vírus
aconteceram durante a fase mais crítica da epidemia, em que ela poderia
ter sido contida. E os cientistas da OMS, em reuniões internas,
perceberam isso. Está na hora de “mudar de marcha” e aumentar a pressão
sobre a China, disse o médico Michael Ryan, diretor de emergências da
OMS, em uma reunião na segunda semana de janeiro. Ele temia que o novo
vírus repetisse a história da Sars (Síndrome Respiratória Severa Aguda),
que surgiu em 2002 na China e matou 800 pessoas pelo mundo. “É
exatamente o mesmo cenário, tentando incessantemente conseguir
atualizações sobre a China sobre o que estava acontecendo”, disse. Ryan
via riscos para a própria OMS, e fez uma comparação com o papel da
entidade durante a Sars. “A OMS mal saiu inteira daquele caso”.
“Nós estamos operando com informações
bem mínimas. Não é o suficiente para fazer um planejamento adequado”,
disse a epidemiologista americana Maria Van Kerkhove, diretora-técnica
das ações sobre Covid-19 na OMS, durante reunião da entidade. “Chegamos a
um estágio em que, sim, eles só nos dão 15 minutos antes de divulgar [informações] na CCTV [emissora estatal chinesa]“, reclamou Gauden Galea, diretor da OMS na China, em outra reunião.
A OMS tem sido criticada por demorar a
classificar a situação atual como uma pandemia, o que só ocorreu em 11
de março. O presidente dos EUA, Donald Trump, chegou a acusar a entidade
de agir em conluio com o governo chinês e anunciou, na semana passada,
que seu país irá deixar a OMS. Mas os novos registros sugerem que a
agência estava sendo mantida no escuro, sem acesso a dados essenciais –
justamente durante a fase inicial, e mais crítica, do espalhamento do
vírus. (SuperInteressante)
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