O casal de imigrantes que levou a carne seca nordestina à América do Norte
Há quase 10 anos no Canadá, o pernambucano Leonardo Barbosa, 44, sempre fez comida brasileira em casa.
Ele
mora em Calgary, na província de Alberta, no oeste do país. Ele
encontrava quase todos os ingredientes da culinária brasileira de que
precisava, menos a tradicional carne seca, ou carne de charque.
Segundo ele, o produto não podia ser comprado em nenhum lugar na América do Norte.
Leonardo e sua mulher, Adriana Barbosa, 42, se mudaram para o
Canadá em busca de uma qualidade de vida melhor. Ele, engenheiro
agrônomo, era comerciante em Recife, e Adriana trabalhava como designer
gráfica.
Quando chegaram ao país, Adriana já dominava o inglês e
foi trabalhar com o irmão, já estabilizado no país. Leonardo não falava
uma palavra do idioma e foi trabalhar ensacando batatas.
Aos
poucos ele foi aprendendo a língua e conseguiu entrar no mercado. Até
que, em 2016, um diagnóstico mudou o rumo da vida do casal. Adriana
estava grávida de 5 meses quando ficou sabendo que o bebê tinha Septo
Atrioventricular Total, ou DSAVT. A doença é caracterizada por uma
malformação que compromete a comunicação entre os átrios do coração.
Metade dos bebês com a doença tem síndrome de Down.
Depois do
primeiro diagnóstico, exames confirmaram que o filho do casal nasceria
com síndrome de Down. "Foi um baque muito grande processar aquilo com
tantas expectativas," disse Adriana.
A partir desse dia, Leonardo
passou a acompanhar a mulher em todas as consultas médicas — e eram
muitas. As faltas no trabalho fizeram com que ele fosse demitido. Quando
Oliver nasceu, Leonardo ficou em casa para cuidar do filho enquanto a
esposa trabalhava.
E foi logo antes da chegada de mais uma
estação fria no Canadá, enquanto estava deitado em uma rede, que
Leonardo teve a ideia de arriscar uma receita que mudaria a história da
família. Ele salgou e pendurou dois pedaços de carne na cozinha do
apartamento onde moram, em Calgary.
"Quando ele disse que ia fazer
aqui, eu disse: 'Pelo amor de Deus, a casa vai ficar cheirando.' Eu só
pensei na parte prática", disse Adriana.
Leonardo insistiu com a esposa. Ele disse que estava com muita saudade, que ia fazer e que ia dar certo.
Quando
a carne ficou pronta, eles chamaram um casal de amigos para jantar.
Leonardo começou a pensar que, talvez, estivesse diante de uma
oportunidade de negócio.
"Quando eles entraram ela [amiga] já
sentiu o cheiro e ela disse: 'eu conheço esse cheiro'. Aí eu coloquei
macaxeira cozida na mesa e, quando eu trouxe a carne acebolada, ela nem
esperou eu colocar na mesa, ela já foi colocando o garfo e tirando da
própria panela. Aí ela botou na boca, fechou o olho, aí deu um sorriso.
Aí ela disse: 'Onde foi que você conseguiu?' Eu disse que tinha feito e
ela falou: 'Eu quero um quilo'."
Com o sabor da carne aprovado,
Leonardo decidiu que valia a pena tentar. Foram então 13 meses de
pesquisa científica e desenvolvimento antes de começar a produção da
carne seca no Canadá. A carne seca, da forma como é preparada no Brasil,
não pode ser exportada para a América do Norte por não atender às
legislações dos países.
Direito de imagemDivulgaçãoImage caption
Adriana e Leonardo com o filho Oliver, de 3 anos
O processo de pesquisa envolveu testes, análises,
tudo já sendo documentado e com o respaldo da agência federal de
inspeção alimentar canadense, a CFIA. Na época, diz ele, como não
existia nada similar à carne seca, o produto foi analisado com as regras
mais rígidas da legislação do Canadá.
"Eles usaram o critério
mais severo que tinha na escala de produção de carne, porque, se a gente
atendesse a todos os requisitos mais severos, estaríamos seguros do
ponto de vista técnico/científico," disse Leonardo.
Na última fase
dos testes, o sabor da carne ainda não estava como Leonardo queria. A
caminho de casa, foi uma música de Zé Ramalho que deu força para que
Leonardo não desanimasse.
"Eu entrei na minha caminhonete
decepcionado, voltando da fábrica, e então Zé Ramalho começou a cantar
pra mim: 'agora pego um caminhão/na lona vou a nocaute outra vez.' Aí eu
disse: 'poxa, mas eu tô nocauteado, mas toda luta que a pessoa é
nocauteada, sempre vem a outra luta e a pessoa luta de novo pra tentar
revanche.' Então eu disse: 'fomos nocauteados, mas a gente pode se
superar'."
Leonardo voltou para as pesquisas, corrigiu o erro e
conseguiu fazer com que a carne seca tivesse o mesmo sabor daquela que
ele comia na infância no Brasil.
"O problema todinho do produto é
desenvolver o sabor. Você não vai só colocar sal num pedaço de carne e
vai fazer carne seca. A pessoa come a carne seca não é porque ela está
querendo comer uma carne desidratada. Ela quer comer o sabor que tá
entranhado no DNA dela. Ela cresceu comendo carne seca. Ela quer um
pedaço da carne que tem o gosto da carne que a vó dela fazia, que a mãe
dela fazia," disse.
No dia 11 de julho de 2018, já com a empresa
registrada com o nome de Lead Foods, Leonardo vendeu a primeira caixa de
carne seca, com selo de inspeção federal canadense. "A pessoa que
comprou colocou nas mídias sociais. Naquela noite recebi quase 100
e-mails de vários lugares do Canadá."
Dias depois, a carne seca
ficou disponível para compra online. Aos poucos, lojas físicas como
supermercados e mercados que vendem produtos latinos começaram a vender a
carne seca e hoje já são 32 pontos de venda no país. Com a presença
encaminhada no mercado canadense, Leonardo partiu para uma conquista
ainda mais ousada: entrar no mercado americano.
O rigor que a
carne seca enfrentou no Canadá abriu as portas nos Estados Unidos. O
produto agora só aguarda a aprovação dos rótulos pelo departamento de
agricultura do país para começar a ser vendido em solo americano.
A
empresa já conta com a plataforma online preparada para enviar para
todo o país, e Leonardo tem também uma lista de lojas físicas
interessadas em revender a carne seca.
Ele conta que no Canadá já
recebeu muitas mensagens emocionadas de brasileiros que experimentaram
sua carne seca e que agora é a vez de levar o produto com sabor
nordestino para mais brasileiros.
A empresa, em que trabalham
cerca de 12 funcionários, permite que Leonardo tenha tempo para se
dedicar ao filho, Oliver, 3. O menino mudou a história do casal, e
Leonardo diz que ele é como uma luz.
"Ele hoje é uma criança muito feliz. Ele exala alegria, ele é contagiante. Ninguém fica sério junto dele."
Quando
lembra do início da sua jornada no país, Leonardo ainda se emociona.
"Eu vim pra cá sem inglês. Hoje eu sou registrado no instituto de
agrônomos da província e tenho conversas telefônicas com o pessoal de
inspeção do governo canadense, governo americano. Eu lido com pessoas de
patente alta que eu jamais imaginei na vida. Para um imigrante, que
veio pra cá sem falar inglês, sem saber o que ia fazer da vida, é
muito." (BBC News Brasil)
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