terça-feira, 17 de maio de 2016

'Nós da imprensa somos bons em monitorar diversidade - no quintal dos outros'


Há muitos e muitos anos, em uma redação brasileira, recebi uma "chamada" de um editor. Era para eu selecionar menos negros como personagens. Na época, eu saia diariamente com a missão de encontrar pessoas que pudessem ilustrar, com foto e relato, reportagens das mais variadas. Entre jornalistas, era comum ouvir que, em páginas de certas publicações, negros eram praticamente banidos. E, como parte da racionalização deste verdadeiro absurdo, ouvi algumas vezes o exemplo de uma publicação que, com um negro na capa, praticamente encalhou. Era uma conversa que começava em tom alarmado de denúncia e terminava em tom de resignação. O culpado era o mercado. Afinal, a imprensa estava apenas respondendo à demanda do público.
Será? Nós, profissionais da imprensa, devemos fazer algo para mudar isso? Poderia dizer que, sim, "porque estamos em 2016", parafraseando o uber-cool primeiro-ministro canadense que deu essa resposta ao ser questionado, no ano passado, sobre o porquê de tantas mulheres e minorias em seu gabinete. Mas tenho a impressão de que essas frases de efeito só tocam corações convertidos.
Enviei para minha equipe uma mensagem de WhatsApp pedindo que a gente usasse a polêmica em torno do gabinete de Michel Temer para fazer uma autocrítica, uma reflexão sobre nosso papel como parte do problema. A falta de representatividade na nossa equipe merece essa autocrítica. Nossa diversidade étnica é baixíssima e são poucos os profissionais fora do eixo Rio-São Paulo. Mas, na mensagem, me referia especificamente ao conteúdo que produzimos.
É que nós normalmente enxergamos a pluralidade em um contexto ideológico. Temos como missão buscar o equilíbrio. E temos feito isso com relativo sucesso. No domingo, na nossa página do Facebook, por exemplo, disse o leitor João Rodrigues: "Eu vendo alguns chamando a BBC de petista e outros, de golpista, e chego à conclusão de que a BBC está sendo imparcial. Parabéns BBC por mostrar os dois lados da moeda". Mas nossa missão não se restringe a dar voz a Kim Kataguiri, do MBL, e a Guilherme Boulos, do MTST.
Somos bons em monitorar a diversidade. Mas, de preferência, no quintal do outros. É a Câmara que só tem 10% de mulheres, são as empresas com poucas em cargos executivos. Chegamos a fazer, em 2014, um excelente texto mostrando como não havia meninas negras retratadas nas revistas para a adolescentes no Brasil. A autora, uma então estudante de Jornalismo negra, dizia: "Estou no Brasil, mas me sinto na Rússia". Mais uma vez, botamos o dedo na ferida - dos outros.
Mas quantas vezes publicamos reportagens em que só homens são entrevistados? Quantos personagens negros usamos em reportagens que não sejam sobre os temas "típicos", como racismo e preconceito? A mesma lógica vale para pessoas com deficiência. Estamos restringindo essa representação a espaços cativos? E por que nos concentramos tanto em entrevistados de São Paulo, Rio e Brasília?
A crise da microcefalia nos mostrou como há cientistas gabaritados no Nordeste. Se conseguimos falar com brasileiros nos mais longínquos rincões do mundo, por que é tão difícil encontrar um sociólogo em Goiânia com um estudo interessante, um cardiologista de destaque em Maceió? Essas são apenas algumas perguntas que mostram como a busca pela pluralidade é mais complexa do que parece à primeira vista.
Que visões e exemplos estamos deixando de conhecer por conta dessa miopia? Sim, porque a questão aqui não se restringe ao direito ao espaço, a uma espécie de "cota da aspa". A questão essencial é: o que estamos perdendo ao não representar essas vozes?
Do ponto de vista intelectual, estamos deixando de ter acesso à riqueza de conteúdo que o Brasil pode oferecer. Em termos econômicos, não estamos nos conectando - de igual para igual - com inúmeras partes do país onde aumenta o acesso à internet, aumenta a renda e novos mercados se abrem. E que mundo estamos ajudando a manter com a reprodução de um modus operandi antigo - e obsoleto - de se enxergar o mundo e de se fazer Jornalismo?
A conversa com a equipe hoje pelo WhatsApp já rendeu uma série de excelentes ideias práticas. Uma repórter sugeriu criarmos uma agenda de contatos fora do eixo Rio-SP. Um repórter sugeriu uma painel de mulheres que avaliassem as primeiras medidas do gabinete de homens. Seria excludente para chocar mesmo. "E quem são as mulheres que poderiam ter sido ministras, digamos, da Ciência e Tecnologia?", perguntou outro. Não sei. Mas, se a imprensa não der voz a elas, dificilmente, serão um dia. Muitas perguntas, algumas respostas e um compromisso de refletir melhor nossa sociedade em constante transformação.

Silvia Salek

BBC Brasil 

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